terça-feira, 27 de novembro de 2007

VIII

hoje a paisagem neon do sul manchou-se de uma chuva incerta.
o impacto pesado dos pingos no telhado podiam ser contabilizados
e até as andorinhas permaneceram por um tempo piscando seus ventres contra as nuvens.
neon o verde da montanha alta esculpida a sudeste e do vale em seu caminho setentrional;
neon o azul do céu lançando um arco-íris incompleto ao ocidente.
agora só os pardais ousam guarnecer as marquises e os muros com as últimas catas no bico e os últimos troca-troca de lugar
(a viuvinha espia assustada pelo túnel emplumado do seu ninho).
após um breve suspiro volta a terra expelindo seus odores de reclamação úmida contra a provocação da chuva que retornou decidida.
os cavalos escarafuncham tranqüilamente com bocas de velcro as faixas de mato de uma construção abandonada;
um gavião traça sua última elipse sobre os eucaliptos
e além da antena parabólica
desaparece nos fundos das telhas do vizinho.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

VII

hoje a tarde está indecisa como uma noiva incrédula
diante do anel inesperadamente desejado.
a luminosidade brilha em cada molécula da atmosfera
como o mistério,
os bloquetes da rua refletem o cinza luminescente do céu
onde se esconde o sol momentaneamente preterido pelo temporal sobranceiro.
o pássaro branco e preto tem também uma plumagem de um fraco pardo na nuca,
na nuca inquieta que espia a todo momento por baixo de portas inexistentes;
seu corpo se abaixa como um soldado entrincheirado para depois
logo depois
saltar numa pequena altura como quica uma bola de futebol;
caindo, bambeia o pequeno corpo aerodinâmico
levanta ora o rabo altivo
ora a cabeça
onde brilham seus olhos maquiados de dançarina árabe;
a chuva que ainda não veio ofusca e erra o contraste da sua coloração
mas não toca uma pena do seu canto de momentos misteriosos
nem de seus afazeres diuturnos em torno do ninho recém construído em cima do padrão que registra o consumo elétrico.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

VI

hoje o vento está decidido:
vai soprar até derrubar tudo
ou deixar em tudo a expressão do espanto;
e chega como uma cavalaria de cossacos
galopando habilmente por todas as frinchas – as ruas, as janelas
e as garagens – cercando seus inimigos,
surgindo e desaparecendo por todos os pontos cardiais,
vibrando os fios e as lâmpadas dos postes, os esquadros metálicos e os vidros,
gritando um ódio invejoso do sossego
ou incompreensivo
somente.
dá trégua provisoriamente para que os latidos desvairados possam ser escutados
e volta – e vai;
os cães compõem uma ópera em tropeços soluçantes
uma ária,
um prólogo para o ataque da massa de ar subdividida em inúmeros guerreiros trajados com a mesma centelha da violência divina.
a porta e a janela ricocheteiam estampidos dolorosos,
deixando entrar – embarcado no assobio do vento em liberdade
roçando a concretude – o Réquiem de Mozart perdido na catedral da escuridão,
para onde se recolhe a brisa restante
substituída pelo silencioso tic-tac do relógio da cozinha.

domingo, 18 de novembro de 2007

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

V

hoje veio com as partículas do sul e do chão
o frio;
e o sol, que penetrado na transparência oblíqua da manhã termina refratando na cidadela aracnídea do beiral,
relativizou-se:
foi só calor por onde andava desinibido;
mas por trás das sombras
dos telhados, das caixas d’água, das antenas parabólicas
dos pardais gorduchos
a grama tem seus verdes cristalizados pelo orvalho
e no outro lado do muro descansam calmamente as samambaias.
o pássaro branco-e-preto – cujo ninho
se descabela num vértice elétrico,
ameaçado pelos bandos de pardais cruzando o espaço inferior às andorinhas em ronronares alados de gatos caseiros,
sobre as vagas raivosas dos cães presos,
sob o olhar distraído do companheiro – trota veloz
e indeciso entre a rua e a calçada,
pulando por sobre seu reflexo na poça d’água
onde cria pequenas ondas circulares de sede
e avoa quando se aproxima um caminhão de terra.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

IV

hoje a noite veio lenta
e a aparente calma é carcomida num frêmito pela desenfreada atividade do novo turno dos animais,
e das plantas
e pela ignorância carregada na correnteza do riacho.
uma coruja grunhe ameaçadora, defensiva
ou simplesmente grunhe pelo hábito de grunhir.
uma estrela arranha o céu por cima do mercúrio dos postes de luz:
alguém pede que um santo mande chuva para vingar o milho plantado.
a clorofila coloca a fotossíntese de lado para despreocupadamente ver a lua se enganar
cheia como o rastro de um cavalo na terra batida,
milagrosamente sombreando as sombras
com uma luz esguia do gosto de um chá prematuro
onde se tem misturada quantidade insuficiente de açúcar mascavo.
os insetos se concentram,
pontilhando sem qualquer indício das suas sombras
o raro que há de luz,
escorregando-se no óleo de um quadro de Van Gogh.

domingo, 4 de novembro de 2007

III

hoje a chuva caiu no fim da tarde,
forte como quem se move propelido por uma certeza absoluta.
em prefácio cinza-azulado,
a alcova do seu palco foi o sul,
sudeste talvez.
as pequenas pedras e os insetos mais frágeis
expostos ao seu espetáculo
figuraram interativos com um indubitável e concreto acaso:
gotas do acaso que ora os atingiam,
ora os ameaçavam
e incontáveis vezes caíam secas no cimento, no aço, nos paralelepípedos, nas gramas e nas poças – caíam
como quem simplesmente acontece;
e ali entregavam – católicas,
as suas efêmeras e errantes vidas de queda livre.
um imenso arco-íris tampouco deixava dúvida
com sua existência semi-celeste,
nascendo por detrás de um poste de energia e atravessando – roxo, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e anis – o espectro cinza das nuvens,
arqueando como um monumento verdadeiramente clássico erguido entre montanhas tangentes.
ninguém ousou sair à rua em atenção ao duelo oferecido;
a vizinha abandonou seu carro semi-afundado
e a concessionária de esgoto lembrava-se por uma placa amarela de aviso de obra.
na curva do morro, os reservatórios de água refletiam um som metalizado
– posto em dúvida pelas redondezas –
lembrando uma natureza em que a sorte não difere na desigualdade.