vivia eu no oitavo andar de um prédio, e no décimo primeiro um garotinho que devia ter sete anos. era uma criança com ares angélicos, sorriso sempre vivo combinando com os olhos ingênuos, um cabelo loiro escorrido e curto, roupa sempre aprumada. filho de uma mulher jovem, entre trinta e trinta e cinco anos, e que cuidava do garoto sozinha. não alcancei saber se era mãe solteira ou viúva, pois a jovem senhora, embora de trato sempre simpático, conversas afáveis e cumprimentos de costume, se alguma vez lhe batessem à porta da menos recôndita intimidade, dava jeito de interromper a conversa, se despedindo com a desculpa de um forno ligado. esses seus modos recatados, no entanto, não ofuscavam aqueles sociais, e toda a gente do prédio era unânime em tratar a ela e a seu pequeno com afagos, dispensando ao último alguns doces vespertinos e lembrancinhas no doze de outubro. desde que eles se mudaram para o prédio, quando então o menino devia ter seus quatro anos, a lua-de-mel durou bastante, levando em consideração os efeitos da convivência diária que impõe a vizinhança vertical. terminou, porém.
ocorreu que a criança, já adentrada na primeira séria do primeiro grau, não se sabe se pelas matérias de conteúdo mais avançados ou se pela convivência com novos coleguinhas, essa criança aos mimos oferecia só seu sorriso angelical e às vezes, para deleite das mulheres, chegava a dizer um fresco – muito obrigado – com aquela entonação infantil, essa criança passou a cumprimentar todos que cruzava, seja no elevador, na portaria, no hall de entrada ou no parquinho, dizendo, com a mesma tônica infantil e angelical, as seguintes palavras:
- boceta boa!?
de início os ouvidos duvidaram, espicharam para se certificar do que estavam escutando; foi o primeiro passo para deflagrar uma boataria pelos elevadores, na alta velocidade que de costume correm os boatos – que é um assunto quase metafísico, se já não houvesse a comparação com o fogo e a pólvora. no nosso caso, é verdade, estão ambos separados, e embora o primeiro corroa, o faz no manto da imagem pública, sem causar estragos imediatos na segunda. mas também é verdade que no nosso caso o fogo se espalhou e atingiu a mãe, que passou de virtuosa às mais impróprias desconfianças que o gênio da imaginação humana pode edificar.
- boceta boa!? dizia a criança para rubor imediato das garotas. no meu caso, não entendendo por completo aquele fenômeno, me contentava em espalmar-lhe a minha mão no cabelo escorrido, dar-lhe um sorriso – o qual decorei com o tempo, repetindo-o sempre – e em pensar meia dúzia de coisas que se revezavam nas conseguintes edições do fenômeno.
passado o mês, a situação começou a ficar insuportável, visto que o tratamento à dupla do décimo primeiro andar beirava o desrespeito; o zelador, inclusive, antes freqüente fornecedor de mandioquinha com açúcar para o pequeno, agora não suportava vê-lo, sabendo que o garoto iria pronunciar a frase, demasiadamente forte para seus modos humildes e cristãos.
por parte da mãe não verifiquei grande reação e, se alguma vez achei vê-la vermelha, outras encontrei nos seu olhos o orgulho dos genitores; e tais reações vinham a meter obstáculos na minha tentativa de entender a situação. eu, que sempre tive a impertinência com um dos filhos do meu caráter, irmã da curiosidade, estive à beira de bater-lhes à porta ou enviar-lhes uma carta, de modo que certa vez cheguei a introduzir o assunto, seguidamente ao “boceta boa”, mas a mãe logo saiu dizendo que no forno estava assando um pernil – e ela tinha que ir.
outro fator de complicação era que a criança não falava absolutamente outra coisa senão o “boceta boa”, assim mesmo, pronunciando a primeira sílaba “bo” com gosto; também não escondia certa satisfação, transmitida naquele sorriso infantil, ao ver alguma reação, que invariavelmente causava, no rosto dos obsequiados. tal fato, aliás, motivou um senhor morador do décimo sexto andar, que ouvi à beira da piscina, a dizer:
- pois sabe, sou psicólogo há mais de trinta anos, e já não tenho dúvidas do que esse garoto tem: é uma disfunção psicoverbal precoce, quero dizer, uma disfunção do mecanismo psicológico que trabalha com os sentimentos ligados ao sexo, e que foi de alguma maneira acelerado e agora se manifesta pela forma verbal.
- ah, sim? disse eu. e como isso acontece?
- ah, há diversas maneiras. podemos ver frequentemente casos em que a família tem grande parte da culpa, seja por incutir diretamente essas idéias na mente da criança, seja, por exemplo, por permitir que ela tenha acesso a programas de televisão, jogos, revistas, a informações impróprias para seu estágio de desenvolvimento psicológico. pode ser, inclusive, motivado por herança genética.
- entendi, pode ser, concordei incrédulo. e, ademais, não me achava um absoluto desentendido da natureza humana por não ter sentido verdade nas palavras do psicólogo. no entanto, devo dizer, estávamos eu e ele errados.
certo dia foi convocada uma assembléia extraordinária do condomínio para debater uma solução para o assunto, a qual não sei como deram um jeito de não deixar saber a mãe, e onde pude ouvir opiniões de todo tipo. um advogado propôs a via judicial, apontando uma grande possibilidade de êxito; já o psicólogo, na linha da conversa à beira da piscina, sugeria um tratamento terapêutico; houve também a proposta de se estabelecer uma via pela qual, e somente pela qual, a criança deveria atravessar a área comum do prédio, no caminho apartamento-rua-apartamento, e creio que essa sugestão foi dada por um engenheiro, ou professor; não, me lembro, era engenheiro.
- senhores, é uma medida paliativa, sim, até que o garoto esqueça essas palavras, que ele vai esquecer. e além disso beneficia a todos, pois não causa mal-estar aos condôminos e poupará a criança de eventuais repreensões que poderá sofrer, pois sabemos que a situação já está para lá de insustentável!
daí seguiu-se um falatório, donde multiplicavam-se as soluções; retalhos de umas eram colados aos retalhos de outras, formando-se as mais diversas saídas e não poucas aberrações. ao final decidiu-se que uma comissão formada pelo psicólogo, o advogado e o engenheiro iria consultar especialistas e buscaria algumas dissoluções ao dilema, que seriam votadas dali a uma semana.
porém, no dia seguinte ao da assembléia extraordinária, veio o zelador comunicar a todos, ou melhor, a cada um com quem ele topasse pelas áreas do prédio, que o problema parecia que ia ter fim, sem que o condomínio precisasse tomar medidas mais drásticas.
- uma senhora doutora subiu agorinha pouco para o cento e onze, disse ele afobado com a novidade.
- mas que doutora?
- não sei não, mas quando ela anunciou o motivo da visita, disse que era um nome que eu bem sei que era de doutora, de médica.
a visita da tal doutora se repetiu diariamente durante a semana, o que fez a comissão anunciar que a assembléia da próxima semana havia sido adiada, ainda sem data definida, até que se verificasse os reais propósitos da tal médica e que, inclusive, poderia ser definitivamente cancelada caso o garoto alterasse seu hábito vexatório.
lendo o comunicado que me foi entregue em mão e cujas palavras eram mais ou menos essas, fiquei imaginando quem o teria redigido e apostaria minhas fichas no advogado, embora eu mesmo nunca o tenha descoberto.
o fato é que o tratamento para com a dupla do cento e onze vinha melhorando, tendo em conta que o filho era todo silêncio, para alívio da comunidade condominial. da minha parte, no entanto, embora tenha acompanhado toda a mobilização e dado ouvido a toda gente do prédio, confesso que preferia o garoto de antes, cujas palavras não me tiravam o sono, apesar de as estranharem meus ouvidos. o sorriso do garotinho era meu bom dia predileto e meu regozijo de pureza e ingenuidade no fim do dia, que valia mais que muitas formas de diversão. agora não, agora ele ia jururu; o cabelo era o mesmo, mas os olhos iam baixos, a boca sem expressão, e comecei a ficar preocupado quando vi seu cadarço desamarrado. devo confessar que nesse dia perdi o sono e não dormi, e se não me deu de escrever sobre um cadarço desamarrado era porque a tristeza ou me roubava a energia ou me poupava de um ato escabroso de transformar o abatimento de uma criança de verdade em meu lazer pessoal.
foi no dia seguinte, sob os efeitos nefastos de uma insônia, que resolvi bater à porta de cento e onze. fui resoluto, e resoluto apertei o onze do elevador, e abri-lhe a porta e resoluto toquei a campainha. a resolução aí é o efeito de quando aquelas duas filhas do meu caráter unem as mãos e saem cantarolando a cantiga da benevolência. o ruído do lado de dentro do apartamento creio que causou algum efeito, fez talvez uma das irmãs, não sei qual, hesitar um instante, mas a outra deu-lhe um tranco pela mão e assim manteve-se em mim a resolução intacta. estava a doutora de saída, que me cumprimentou com a voz tranqüila e afável, gestos calmos e foi-se pelo elevador que já estava ali por minha causa.
a mãe, reticente, convidou-me a entrar. entrei. ela era uma mãe comum, cuidando dos afazeres do apartamento, atenciosa, jovem e bonita com seus trinta e dois anos. então vi o garoto, que, sentado no sofá, lia histórias em quadrinhos sem se dar conta de mim – creio que um almanaque de férias, que aquele era o tempo desses almanaques – e o lia em voz alta e aberta, com certo artificialismo em algumas palavras, certo esforço que não consegui compreender de imediato. ela, percebendo meu estranhamento, disse calmamente:
- ele está fazendo aulas de fonoaudiologia. está treinando a pronúncia das letras e das palavras, principalmente da letra “v”. ele tem um problema que os fonoaudiólogos chamam de mal de espanha, porque troca o som do “v” pelo do “b”.
fiquei eu ali abestalhado, aturdido, envergonhado. um pouco por mim e pela minha cumplicidade, mas mais pelos meus cúmplices, cujas maldades agora se refletiam no meu mecanismo de culpa, de silêncio e de aceitação. confesso que senti pena deles, de mim e do mundo, mas não tive pena da dupla do cento e onze; deles tive orgulho. mas eles, dali a pouco mais de uma semana, estavam de mudança para outra cidade. eu sentia algo de ruim toda vez que entrava no elevador, via o onze do andar, olhava os vizinhos, conversava com o zelador, dentre outras coisas diárias que me faziam lembrar o garoto; era a vergonha da cumplicidade que vinha me dar tapinhas no rosto, repreensiva e zombadora. não pude suportá-la por muito tempo, e quando mais tarde me mudei eu também do prédio, o apartamento cento e onze ainda estava vago.
o cento e onze
ocorreu que a criança, já adentrada na primeira séria do primeiro grau, não se sabe se pelas matérias de conteúdo mais avançados ou se pela convivência com novos coleguinhas, essa criança aos mimos oferecia só seu sorriso angelical e às vezes, para deleite das mulheres, chegava a dizer um fresco – muito obrigado – com aquela entonação infantil, essa criança passou a cumprimentar todos que cruzava, seja no elevador, na portaria, no hall de entrada ou no parquinho, dizendo, com a mesma tônica infantil e angelical, as seguintes palavras:
- boceta boa!?
de início os ouvidos duvidaram, espicharam para se certificar do que estavam escutando; foi o primeiro passo para deflagrar uma boataria pelos elevadores, na alta velocidade que de costume correm os boatos – que é um assunto quase metafísico, se já não houvesse a comparação com o fogo e a pólvora. no nosso caso, é verdade, estão ambos separados, e embora o primeiro corroa, o faz no manto da imagem pública, sem causar estragos imediatos na segunda. mas também é verdade que no nosso caso o fogo se espalhou e atingiu a mãe, que passou de virtuosa às mais impróprias desconfianças que o gênio da imaginação humana pode edificar.
- boceta boa!? dizia a criança para rubor imediato das garotas. no meu caso, não entendendo por completo aquele fenômeno, me contentava em espalmar-lhe a minha mão no cabelo escorrido, dar-lhe um sorriso – o qual decorei com o tempo, repetindo-o sempre – e em pensar meia dúzia de coisas que se revezavam nas conseguintes edições do fenômeno.
passado o mês, a situação começou a ficar insuportável, visto que o tratamento à dupla do décimo primeiro andar beirava o desrespeito; o zelador, inclusive, antes freqüente fornecedor de mandioquinha com açúcar para o pequeno, agora não suportava vê-lo, sabendo que o garoto iria pronunciar a frase, demasiadamente forte para seus modos humildes e cristãos.
por parte da mãe não verifiquei grande reação e, se alguma vez achei vê-la vermelha, outras encontrei nos seu olhos o orgulho dos genitores; e tais reações vinham a meter obstáculos na minha tentativa de entender a situação. eu, que sempre tive a impertinência com um dos filhos do meu caráter, irmã da curiosidade, estive à beira de bater-lhes à porta ou enviar-lhes uma carta, de modo que certa vez cheguei a introduzir o assunto, seguidamente ao “boceta boa”, mas a mãe logo saiu dizendo que no forno estava assando um pernil – e ela tinha que ir.
outro fator de complicação era que a criança não falava absolutamente outra coisa senão o “boceta boa”, assim mesmo, pronunciando a primeira sílaba “bo” com gosto; também não escondia certa satisfação, transmitida naquele sorriso infantil, ao ver alguma reação, que invariavelmente causava, no rosto dos obsequiados. tal fato, aliás, motivou um senhor morador do décimo sexto andar, que ouvi à beira da piscina, a dizer:
- pois sabe, sou psicólogo há mais de trinta anos, e já não tenho dúvidas do que esse garoto tem: é uma disfunção psicoverbal precoce, quero dizer, uma disfunção do mecanismo psicológico que trabalha com os sentimentos ligados ao sexo, e que foi de alguma maneira acelerado e agora se manifesta pela forma verbal.
- ah, sim? disse eu. e como isso acontece?
- ah, há diversas maneiras. podemos ver frequentemente casos em que a família tem grande parte da culpa, seja por incutir diretamente essas idéias na mente da criança, seja, por exemplo, por permitir que ela tenha acesso a programas de televisão, jogos, revistas, a informações impróprias para seu estágio de desenvolvimento psicológico. pode ser, inclusive, motivado por herança genética.
- entendi, pode ser, concordei incrédulo. e, ademais, não me achava um absoluto desentendido da natureza humana por não ter sentido verdade nas palavras do psicólogo. no entanto, devo dizer, estávamos eu e ele errados.
certo dia foi convocada uma assembléia extraordinária do condomínio para debater uma solução para o assunto, a qual não sei como deram um jeito de não deixar saber a mãe, e onde pude ouvir opiniões de todo tipo. um advogado propôs a via judicial, apontando uma grande possibilidade de êxito; já o psicólogo, na linha da conversa à beira da piscina, sugeria um tratamento terapêutico; houve também a proposta de se estabelecer uma via pela qual, e somente pela qual, a criança deveria atravessar a área comum do prédio, no caminho apartamento-rua-apartamento, e creio que essa sugestão foi dada por um engenheiro, ou professor; não, me lembro, era engenheiro.
- senhores, é uma medida paliativa, sim, até que o garoto esqueça essas palavras, que ele vai esquecer. e além disso beneficia a todos, pois não causa mal-estar aos condôminos e poupará a criança de eventuais repreensões que poderá sofrer, pois sabemos que a situação já está para lá de insustentável!
daí seguiu-se um falatório, donde multiplicavam-se as soluções; retalhos de umas eram colados aos retalhos de outras, formando-se as mais diversas saídas e não poucas aberrações. ao final decidiu-se que uma comissão formada pelo psicólogo, o advogado e o engenheiro iria consultar especialistas e buscaria algumas dissoluções ao dilema, que seriam votadas dali a uma semana.
porém, no dia seguinte ao da assembléia extraordinária, veio o zelador comunicar a todos, ou melhor, a cada um com quem ele topasse pelas áreas do prédio, que o problema parecia que ia ter fim, sem que o condomínio precisasse tomar medidas mais drásticas.
- uma senhora doutora subiu agorinha pouco para o cento e onze, disse ele afobado com a novidade.
- mas que doutora?
- não sei não, mas quando ela anunciou o motivo da visita, disse que era um nome que eu bem sei que era de doutora, de médica.
a visita da tal doutora se repetiu diariamente durante a semana, o que fez a comissão anunciar que a assembléia da próxima semana havia sido adiada, ainda sem data definida, até que se verificasse os reais propósitos da tal médica e que, inclusive, poderia ser definitivamente cancelada caso o garoto alterasse seu hábito vexatório.
lendo o comunicado que me foi entregue em mão e cujas palavras eram mais ou menos essas, fiquei imaginando quem o teria redigido e apostaria minhas fichas no advogado, embora eu mesmo nunca o tenha descoberto.
o fato é que o tratamento para com a dupla do cento e onze vinha melhorando, tendo em conta que o filho era todo silêncio, para alívio da comunidade condominial. da minha parte, no entanto, embora tenha acompanhado toda a mobilização e dado ouvido a toda gente do prédio, confesso que preferia o garoto de antes, cujas palavras não me tiravam o sono, apesar de as estranharem meus ouvidos. o sorriso do garotinho era meu bom dia predileto e meu regozijo de pureza e ingenuidade no fim do dia, que valia mais que muitas formas de diversão. agora não, agora ele ia jururu; o cabelo era o mesmo, mas os olhos iam baixos, a boca sem expressão, e comecei a ficar preocupado quando vi seu cadarço desamarrado. devo confessar que nesse dia perdi o sono e não dormi, e se não me deu de escrever sobre um cadarço desamarrado era porque a tristeza ou me roubava a energia ou me poupava de um ato escabroso de transformar o abatimento de uma criança de verdade em meu lazer pessoal.
foi no dia seguinte, sob os efeitos nefastos de uma insônia, que resolvi bater à porta de cento e onze. fui resoluto, e resoluto apertei o onze do elevador, e abri-lhe a porta e resoluto toquei a campainha. a resolução aí é o efeito de quando aquelas duas filhas do meu caráter unem as mãos e saem cantarolando a cantiga da benevolência. o ruído do lado de dentro do apartamento creio que causou algum efeito, fez talvez uma das irmãs, não sei qual, hesitar um instante, mas a outra deu-lhe um tranco pela mão e assim manteve-se em mim a resolução intacta. estava a doutora de saída, que me cumprimentou com a voz tranqüila e afável, gestos calmos e foi-se pelo elevador que já estava ali por minha causa.
a mãe, reticente, convidou-me a entrar. entrei. ela era uma mãe comum, cuidando dos afazeres do apartamento, atenciosa, jovem e bonita com seus trinta e dois anos. então vi o garoto, que, sentado no sofá, lia histórias em quadrinhos sem se dar conta de mim – creio que um almanaque de férias, que aquele era o tempo desses almanaques – e o lia em voz alta e aberta, com certo artificialismo em algumas palavras, certo esforço que não consegui compreender de imediato. ela, percebendo meu estranhamento, disse calmamente:
- ele está fazendo aulas de fonoaudiologia. está treinando a pronúncia das letras e das palavras, principalmente da letra “v”. ele tem um problema que os fonoaudiólogos chamam de mal de espanha, porque troca o som do “v” pelo do “b”.
fiquei eu ali abestalhado, aturdido, envergonhado. um pouco por mim e pela minha cumplicidade, mas mais pelos meus cúmplices, cujas maldades agora se refletiam no meu mecanismo de culpa, de silêncio e de aceitação. confesso que senti pena deles, de mim e do mundo, mas não tive pena da dupla do cento e onze; deles tive orgulho. mas eles, dali a pouco mais de uma semana, estavam de mudança para outra cidade. eu sentia algo de ruim toda vez que entrava no elevador, via o onze do andar, olhava os vizinhos, conversava com o zelador, dentre outras coisas diárias que me faziam lembrar o garoto; era a vergonha da cumplicidade que vinha me dar tapinhas no rosto, repreensiva e zombadora. não pude suportá-la por muito tempo, e quando mais tarde me mudei eu também do prédio, o apartamento cento e onze ainda estava vago.
o cento e onze
2 comentários:
extraordinário.
cabe assistir o vídeo do silvio santos:
http://www.youtube.com/watch?v=6OOdefpClQk
parabéns pelo texto.
abraço
Me parece muito com a história de um certo "salvador"...
Postar um comentário