só lâmina
o assassino sangrará
a mão
para furar
da vítima
o coração
os técnicos passaram com o caminhão da companhia de eletricidade distribuindo a nova fiação pelas ruas e o zelador estava ocupado em cortá-la para ligar ao circuito do prédio quando chegamos e não pudemos entrar com nosso carro. pulamos a grade por um canto com as pizzas e os refrigerantes na mão e atravessamos uma bacia de areia cheia de cacos de vidro de garrafas de bebidas alcoólicas para chegarmos no nosso apartamento. como estava com os pés carregados de areia, gastei um bom tempo batendo-os no capacho da porta do banheiro, cômodo no qual estava resumido nosso apartamento. senti orgulho da minha conduta, como uma criança que aprendeu a andar, talvez. e talvez por isso, mas isso é incerto, juntei dois pedaços de pizza, piquei-os como folhas de papel e, mediante um raciocínio meio melindroso, conclui que seria mais adequado jogar os pedaços no vaso sanitário - o que, naturalmente, só me fez mais orgulhoso de mim.
“Mas nada se transformou, e agora está evidente que foi justamente com a minha aventura que joguei fora as probabilidades da transformação” I. Kertész
E eu que, me lembro bem, sentia um conforto (agora) (estranho) naquela casa com muros nas janelas e pisos frios quando, espremidos entre pães e margarinas e copos azuis, bebíamos toddy (®) (ele chegava a consumir uma caixa inteira nisso) e (ainda) acreditávamos no que falávamos. As tardes promissoras (de frio?) em que andávamos pelas ruelas (sempre) (estranhas) e imaginávamos projetos que (ainda) não sabíamos impossíveis, indo para lugares certos, seguros (e inconscientes) de que nossa idiotice era o máximo do que podíamos. Estávamos errados (claro) e porque (é claro) um idiota não pode ser o máximo de nada que não seja a própria idiotice (o que já é de um otimismo idiota). E se passamos o resto de nossas vidas tentando corrigir aquelas tardes significa que continuamos nelas, é a pergunta que eu nunca soube perguntar e ele nunca estaria pronto para responder. E se (agora) busco (e encontro) prazer em tomar um copo de toddy (®) numa tarde devoluta, perpetuo (desesperado) o eco de um som que (a rigor) nem (sequer) existiu (?).
Acabou.
um pedreiro desabou no passeio
(a criança o carregou nos ombros por sete metros até o pronto socorro municipal)
debateu-se em frente à escola juvenil
assustando a vendedora de cachorro-quente
chamou-se a ambulância
era tarde
morreu às onze horas da manhã
constou no relatório do IML
quatro horas depois.
Me entenda, eu não sou cego; só não enxergo como você deve imaginar. Os olhos não me são úteis nessa tarefa embora funcionem normalmente. Vejo, mas isso é o de menos. Para mim, imagens são imagens assim como um X-burguer é um X-burguer. Na verdade, não preciso enxergar porque todos já o fizeram por mim e fazem questão de compartilhar suas imagens por todos os meios possíveis, embora uns sejam mais convincentes que outros - e é mais ou menos nisso que me fio. Tampouco tenho valores, que esse esforço me dispensei. Criá-los importariam escolhas que não me parecem necessárias. Prontos, estão aí aos montes, infinitos. Da minha parte só tenho que costurá-los de uma forma equilibradamente aceitável - o que por si já dá esforço suficiente até o fim da vida. De modo que certo ou errado é uma questão contingente, pouco ou nada relativa a valores universais; belo ou feio, então, é o sumo da inutilidade no emprego do pensamento e das emoções: se aí está a coisa, para quê mais? Ou razões inexplicáveis seriam mais confiáveis que este meu raciocínio simples de entrega e aceitação? Se você me diz que este quadro é feio, eu não discuto; mas cá em mim, é colocação bem mesquinha a sua. Estando o óleo pincelado, a tela enquadrada, que importa a todos, a tudo, sua opinião? ao quadro, nem que você cuspa involuntariamente enquanto esbraveja contra sua composição, não importa - se exagerarmos imaginação, ele te achará no máximo um cuspidor; limpará o rosto e seguirá postado para alguma eternidade. Agora, se estamos falando de evolução, minha posição será preferencialmente positiva, embora nem sempre bem sucedida. Não importa muito: limpo minha cara e sigo. Se me exijo combate duro contra a preguiça, não deixo de cochilar para ver se é assim mesmo - e assim engano a mim e a preguiça, porque é sempre melhor enganar antes de ser enganado. Se me exijo razões, invento algo que me convença tanto quanto um achocolatado instantâneo; sorvo, lambo o resto e coloco a louça para lavar: reset na veia. Autêntico? faço questão de não ser na medida em que isso o seja. Siga você enxergando, louvando seus óculos, a luz do dia, as flores e me deixe apreciando esse outdoor.