Mostrando postagens com marcador qsJdq. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador qsJdq. Mostrar todas as postagens

sábado, 22 de setembro de 2012

uma faca
só lâmina

o assassino sangrará
a mão

para furar
da vítima
o coração

terça-feira, 23 de agosto de 2011

descarga

os técnicos passaram com o caminhão da companhia de eletricidade distribuindo a nova fiação pelas ruas e o zelador estava ocupado em cortá-la para ligar ao circuito do prédio quando chegamos e não pudemos entrar com nosso carro. pulamos a grade por um canto com as pizzas e os refrigerantes na mão e atravessamos uma bacia de areia cheia de cacos de vidro de garrafas de bebidas alcoólicas para chegarmos no nosso apartamento. como estava com os pés carregados de areia, gastei um bom tempo batendo-os no capacho da porta do banheiro, cômodo no qual estava resumido nosso apartamento. senti orgulho da minha conduta, como uma criança que aprendeu a andar, talvez. e talvez por isso, mas isso é incerto, juntei dois pedaços de pizza, piquei-os como folhas de papel e, mediante um raciocínio meio melindroso, conclui que seria mais adequado jogar os pedaços no vaso sanitário - o que, naturalmente, só me fez mais orgulhoso de mim.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O Enterro

O féretro sairia às 11:30 da porta do Teatro e, não fosse um erro banal de planejamento, chegaria ao cemitério no meio-dia. Subindo 10 metros pela rua e depois seguindo a Avenida, o cortejo não teria dificuldades em encontrar o túmulo já reservado ao falecido diretor. Seu Dalto, zelador indignado do Teatro, naquela mesma tarde comentou com Dona Maria, faxineira:
- Esses filhos da puta não fazem uma merda que seja certa.
Seu Dalto tinha razão. Acostumados a perambular a pé pela região, os organizadores se esqueceram de que aqueles 10 metros de rua eram contramão. E pior: só perceberam depois do carro fúnebre iniciar o trajeto e andar o quarteirão todo. Na primeira esquina, foram despertados pela hesitação: se virassem à esquerda, logo em frente teriam que descer à direita, saindo no Largo, entroncamento confuso que suas mentes não conseguiram desmistificar. Se pegassem a direita, obrigatoriamente teriam que virar à esquerda, caindo no mesmíssimo Largo.
O carro fúnebre parou e o cortejo, estendendo-se por todo o quarteirão, permaneceu parado, com os respectivos pisca-alertas acionados e os óculos escuros a esconderem o rebuliço dos entreolhares. Aqueles que ainda não tinham entrado na rua, depois de 2 minutos, resolveram seguir direto para o cemitério. E por causa de um infeliz que se encontrava ali no meio para deixar seu carro num estacionamento e ir ao escritório do seu contador, ninguém mais conseguiu dar ré. Ele tampouco queriar recuar a 20 metros do seu destino final e isso inaugurou um buzinaço, não é preciso dizer, incompatível com a ocasião.
O motorista do carro fúnebre, um sujeito apático, aguardava a resolução dos organizadores que, nesse momento, estavam tentando argumentar com o infeliz intrometido. Depois de 15 minutos de conversas, bate-bocas, vira-costas etc, percebeu-se que a Ré era impossível. Teriam que decidir: direita ou esquerda?
Seu Dalto afirmaria até o fim dos seus dias que não via razão para que não tivessem seguido pela esquerda, depois direita e depois, na segunda à esquerda, subissem até o fim para virarem novamente à esquerda e daí, seguindo o fluxo, caírem na Avenida do Cemitério. Já Dona Maria, gargalhando largamente, achava que pegando à direita, seguindo o sentido obrigatório à esquerda, depois virando na primeira à direita, seria possível pegar uma rua que cairia no começo da Avenida. Mas Seu Dalto, do alto do seu Monza 92, afirmava pigarreando:
- Não. Ali só ônibus.

(a continuar)

sábado, 16 de abril de 2011

a cidade imperdoada



hoje a cidade me acordou sem nenhuma intenção de perdoar minhas idiotices. a despeito das sirenes e das buzinas, das freadas bruscas e dos gritos histéricos indecifráveis, seu cinza reluzia à cobre. um alquimista deve estar contente, pensei enquanto minhas pernas reclamavam da sua estufa particular. nas esquinas os mesmos buracos, uma demolição arrancava sua carne e os carros seguiam carregando seres mistificados pelo motor. eu não te quero, seu cobre é tolo, nossa coisa : não te perdôo.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

tardes achocolatadas

“Mas nada se transformou, e agora está evidente que foi justamente com a minha aventura que joguei fora as probabilidades da transformação” I. Kertész

E eu que, me lembro bem, sentia um conforto (agora) (estranho) naquela casa com muros nas janelas e pisos frios quando, espremidos entre pães e margarinas e copos azuis, bebíamos toddy (®) (ele chegava a consumir uma caixa inteira nisso) e (ainda) acreditávamos no que falávamos. As tardes promissoras (de frio?) em que andávamos pelas ruelas (sempre) (estranhas) e imaginávamos projetos que (ainda) não sabíamos impossíveis, indo para lugares certos, seguros (e inconscientes) de que nossa idiotice era o máximo do que podíamos. Estávamos errados (claro) e porque (é claro) um idiota não pode ser o máximo de nada que não seja a própria idiotice (o que já é de um otimismo idiota). E se passamos o resto de nossas vidas tentando corrigir aquelas tardes significa que continuamos nelas, é a pergunta que eu nunca soube perguntar e ele nunca estaria pronto para responder. E se (agora) busco (e encontro) prazer em tomar um copo de toddy (®) numa tarde devoluta, perpetuo (desesperado) o eco de um som que (a rigor) nem (sequer) existiu (?).

Acabou.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

como morrer em público

um pedreiro desabou no passeio

(a criança o carregou nos ombros por sete metros até o pronto socorro municipal)

debateu-se em frente à escola juvenil

assustando a vendedora de cachorro-quente

chamou-se a ambulância

era tarde

morreu às onze horas da manhã

constou no relatório do IML

quatro horas depois.

sábado, 21 de agosto de 2010

Adagio

Só porque agora resolvi escrever um post que estou escrevendo - um post (postagem fica muito Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e nestes tempos eleitorais é melhor evitar reminiscências do tema). Isso é inexorável, tanto quanto o seu pensamento, de início adagio, logo presto, prestissimo, de que isto tudo não passa de engambelação. E - suspiro - o que não é? Inclusive esta mania caetanística de ou nãos.
Às vezes me presto de apoio, mas não em semelhança a bengalas e corrimãos, mas sim a esteira emborrachada da escada rolante. Quero dizer - sim, uma merda, mas vamos andando que ficar é pior.
Mas tudo bem, já estamos cansados disto tudo. Estamos buscando o novo amanhã, não é mesmo? Só assim teremos nosso rosto devidamente outdoorizado. E às vezes somos muito dos outros, ou do outro. Que felicidade!
E as mensagens de sri-sri são sempre tão macias, aveludadas como o córrego do Rio Manso que:


Mas, meu amigo, - o que posso dizer? - você precisa de ajuda - é o que dizem - mas você está certo, certíssimo, mais certo só atando o nó final que te jogará no nunca do nada; mas aí não poderemos mais sentar ao sol (esse sol filho-da-puta), respirar fundo e tentar se convencer de que, nossa!, tudo existe: o gramado plantado, o lago represado, o ar poluído, e mesmo assim, e por isso mesmo, sentirmos um traço pequeno de força na nossa powerbar.
E lembrarmos das nossas tardes em que consoles e telas viravam roupa negra e armas construídas, missões inventadas; em que calois viravam cometas; em que meia dúzia de árvores viravam uma floresta num vale mágico.
Meu amigo - você deveria me conhecer -, falo pelo avesso. Este post é para você, mas você nunca vai saber da existência disto e assim - confesso - multiplicarei essa culpa que te esmaga, que te cega, que te chacoalha até te esgotar qualquer capacidade de raciocínio e entrega. E nada te dirá respeito, a não ser o fato - de novo - inexorável da inexistência.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Outdoor

Me entenda, eu não sou cego; só não enxergo como você deve imaginar. Os olhos não me são úteis nessa tarefa embora funcionem normalmente. Vejo, mas isso é o de menos. Para mim, imagens são imagens assim como um X-burguer é um X-burguer. Na verdade, não preciso enxergar porque todos já o fizeram por mim e fazem questão de compartilhar suas imagens por todos os meios possíveis, embora uns sejam mais convincentes que outros - e é mais ou menos nisso que me fio. Tampouco tenho valores, que esse esforço me dispensei. Criá-los importariam escolhas que não me parecem necessárias. Prontos, estão aí aos montes, infinitos. Da minha parte só tenho que costurá-los de uma forma equilibradamente aceitável - o que por si já dá esforço suficiente até o fim da vida. De modo que certo ou errado é uma questão contingente, pouco ou nada relativa a valores universais; belo ou feio, então, é o sumo da inutilidade no emprego do pensamento e das emoções: se aí está a coisa, para quê mais? Ou razões inexplicáveis seriam mais confiáveis que este meu raciocínio simples de entrega e aceitação? Se você me diz que este quadro é feio, eu não discuto; mas cá em mim, é colocação bem mesquinha a sua. Estando o óleo pincelado, a tela enquadrada, que importa a todos, a tudo, sua opinião? ao quadro, nem que você cuspa involuntariamente enquanto esbraveja contra sua composição, não importa - se exagerarmos imaginação, ele te achará no máximo um cuspidor; limpará o rosto e seguirá postado para alguma eternidade. Agora, se estamos falando de evolução, minha posição será preferencialmente positiva, embora nem sempre bem sucedida. Não importa muito: limpo minha cara e sigo. Se me exijo combate duro contra a preguiça, não deixo de cochilar para ver se é assim mesmo - e assim engano a mim e a preguiça, porque é sempre melhor enganar antes de ser enganado. Se me exijo razões, invento algo que me convença tanto quanto um achocolatado instantâneo; sorvo, lambo o resto e coloco a louça para lavar: reset na veia. Autêntico? faço questão de não ser na medida em que isso o seja. Siga você enxergando, louvando seus óculos, a luz do dia, as flores e me deixe apreciando esse outdoor.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

o cárter

retrógado
proteger-se
drogavenéreos
melhor
saber-se
gado
que forafoda
sábado
é só balançar-se
lá na morada
daquelalgumas
sem esforços
e máscaras
acompanhante
gratuito
da solidão
escravo
de força maior
dorme
dorme
mansoelento
a máquina
te recruta
quemsabe
na próxima emergência

anhumas, 14.02.2007

quinta-feira, 11 de junho de 2009

a tempo:

iluminar ficou velho; o que tá valendo é desescurecer. nem que seja pra arreganhar os olhos...

leiteiros de deus

o padre daquela paróquia usava contar uma estória - com "e", ele frisava - de que éramos todos leiteiros de deus. pela manhã, o senhor acorda de seu leito celeste e, com um tapinha, nos levanta da cama - às vezes mais cedo do que esperávamos: nascemos.

daí grita que quer leite, da vaca, quentinho. num pulo, estamos no curral, ajoelhados, contando alturas no balde. mas como a disputa é grande - ele tem muitos leiteiros -, no fim, quem ganha, é quem colocou o balde mais perto do senhor.

por fim, ele dizia: chute o balde com muita força, que ele não tem muita frescura não.

sábado, 31 de janeiro de 2009

prefácio

hoje é o primeiro. não conheço outras terras nem outros sóis. estou sozinho como sempre, desde agora. o cronômetro invisível aguarda o tiro que ecoa. sou eu, e eu. os amigos mortos e enterrados dentro do meu corpo - o brilho dos sorrisos está nas minhas córneas - que não piscam. as aventuras estão suspensas no sangue, surdas com o intervalo infinito das batidas. os prazeres. os medos. as imolações que proponho são vazias. meus sonhos também. ainda vai chegar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

bagagem

estou me alforriando de mim mesmo -
o que devo levar?
e estes post-it´s ainda grudados na minha pele?
esta parafernália toda:
até onde ainda serei eu?

sábado, 17 de maio de 2008

poesia

novidade

eu tenho um suspensório
quem tem um suspensório?
eu tenho um suspensório
comprei um suspensório e agora
tenho um suspensório.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Minha Arte Pessoal - II

(...)

Seria, portanto e concomitantemente, uma "arte" única para cada interpretador. Seria uma "arte" propositalmente indefinida; ou seja, a indefinição transbordaria a subjetividade da interpretação e se estenderia ao próprio conceito "daquilo". Ninguém poderia impor sua conceituação ao outro, nem tampouco se eximir de conceituá-la (nem que tal conceito seja o de não-arte ou mesmo de não-conceito).

Qual seria o próximo passo? Claro. Buscar algo no Google. Busquei, para dar maior abrangência, um termo em inglês: personal art. Encontrei um site holandês que faz quadros com a imagem do cliente, mas com um estilo particular. Tem Warhol, Lichtenstein, Lounge, Photoipod (você como uma sombra e seu iPod destacado), Black&White e Propaganda (que inclui até poster de propaganda comunista com a sua imagem).

Arte Pop?

Encontrei também o site de uma artista brasileira que faz "noivinhos, personagens, potes, portas celulares personalizados, porta fotos personalizados e muito mais", além de achar a arte "uma delícia!!!"

Arte popular brasileira?

Ainda na primeira página dos resultados do Google, cliquei num site francês. Mas como não sei francês, não sei do que se trata esse exemplar do termo que escolhi.

?

É verdade que não passei da primeira página (onde tentei ver ainda este, este e este ), mas não encontrei nada que se aproximasse do que eu queria expressar com "arte pessoal". Incluindo a busca em português, a maioria parecia dizer algo como "minha arte". Portfolio.

Um resultado, no entanto, me interessou. Era um PDF denominado "Arte e beleza: diferentes formulações foucaultianas sobre a estética da existência", que dizia algo bem parecido com aquele Rilke: sobre fazer da vida uma obra de arte. Não vou me aprofundar no que o artigo falava (para isso, vá o leitor clicar no link). Não era exatamente o que eu procurava; forçando, uma fonte inspiradora, teórica, da minha definição.

Mas, então, escrevendo este texto, pensei: se a definição é pessoal, por que eu estou procurando alguma de alguém? Se é pessoal, a origininalidade perde sentido - não importa.

E agora, terminando o texto, eu penso: para quê estou escrevendo tudo isso? Sei lá, é meu manifesto; o manifesto da minha arte pessoal, que só está público para delimitar bem as coisas.


É assim que tudo começou.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Minha Arte Pessoal - I

Andei pensando na utilidade que sempre quis dar às várias coisas que ajunto por aí. Comprovantes de todos os tipos de compras são um dos mais antigos itens colecionados. Comprovantes de cartão de crédito e débito, de pedágio, de estacionamento, de cinema, museu, etc, e de todas as viagens que faço - ao menos para fora do Brasil. Está tudo em caixas e envelopes. Há bastante tempo. Mas mais antigas são as moedas de um centavo. Na última contagem, há mais de 7 anos, eram 200 (ou seja, 2 reais). Depois acho que veio o pó-de-incenso. Isso mesmo, juntei durante muito tempo aquele pó que resta do incenso queimado (o que já disse ser até as cinzas do meu avô...). Têm também os potinhos de plástico onde vêm os filmes fotográficos e, mais tarde, os próprios "casulos" (palavra usada em algumas fotóticas para denominar a própria bobina do filme, muitas vezes reutilizadas nos chamados filmes rebobinados - agora, imagina pedir isso para um laboratório perdido num beco de Istambul...). As rolhas de vinhos. Os cartões de visita. Os outros tipos de cartões (geralmente vencidos, como os dos clubes aos quais não sou mais associado, ou os vazios, no caso dos telefônicos). Os mapas. Aqueles cartões publicitários da Johnnie Walker com frases de efeito, sempre destacando a palavra de maior efeito. As bolachas de chope. Etc.

Um dia, então, tive uma ideia para os comprovantes: colá-los num compensado de madeira (de 1m por 1,6m) que eu tinha em casa e fazer alguma composição com tinta; a tela se chamaria "fuga". Tempos depois, seguindo esse rastro, vieram ideias para os outros ajuntados. Quadros em que eu os colaria com um título que sugerisse alguma reflexão. Assim, os cartões de visita seriam algo do tipo "sociedade" ou "círculo de amigos". Ou até uma combinação de coisas, devidamente dividas de acordo com uma lógica, chamada "ego". Poderiam ser também somente quadros "decorativos", sem título nenhum (e um tanto bregas, um retrô meio anos 80 - a pior década do século passado no quesito bom gosto)(até porque as décadas atual e passada foram tão confusas, receberam tantos adjetivos, que não podemos identificar um gosto para podermos classificá-las).

Mas, daí pensei, estaria eu produzindo "arte"? Bem, como diz o Rilke, nas suas Cartas a um jovem poeta, a arte depende muito mais do artista do que do espectador. Quero dizer, somente eu poderia me responder.

Por um lado, não eram objetos que eu produziria para expor, vender ou mesmo presentear. Seriam visões pessoais do que foi a minha vida. Um tipo plástico de "Em busca do tempo perdido"? Não sei, ainda não li o clássico.

Ou da fase final, autobiográfica do Graciliano Ramos? Também não sei.



Duchamp?

Então comecei a denominar isso de "arte pessoal". Ou seja, seria uma arte voltada somente ao artista e, no máximo, a quem teve uma convivência considerável com ele. A própria definição seria, afinal, pessoal: aquele mesmo objeto seria definido de forma diferente por um eventual espectador deslocado daquela realidade retratada e interpretada.



(... a continuar ...)

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Chave, portão e pasto.

Era o fim da tarde e eu estava saindo de casa para comer uma mexerica no quintal. E por ser uma tarde de inverno, no meu quintal rodeado pelas montanhas do vale do sul não batia sol. Na pequena faixa de concreto no piso da frente da casa é onde batia o tal do sol de fim de uma tarde de inverno. Meus olhos se recolheram no vão entre as casas e muros onde se projetavam o restante da vargem e as colinas do oeste, tudo já naquela escuridão ofuscante, para depois se dirigirem à brilhante mexerica laranja nas minhas mãos. Não havia sentido não dar uma volta pelo menos até o pasto dos fins da rua – uma caminhada de cinquenta metros de ida. O frio me levava ao sol; a própria logística do se comer uma mexerica!: adubaria a natureza com a casca e o bagaço (é que ultimamente não tenho comido o bagaço), além das sementes que poderiam germinar uma nova árvore – frutífera! – naquele pasto. Para tanto eu deveria voltar para casa e pegar a chave do portão; eu estava disposto a fazer isso mas não estava disposto a esperar para comer despretensiosamente minha única mexerica. Assim, adubei primeiro meu quintal, enquanto voltava já com a chave na mão. Naturalmente abri o cadeado (com todo procedimento regular), forcei um pouco mais que de costume o ferrolho sempre emperrado (mais – porque não costumo chegar ou sair e casa com mexericas na mão) e ganhei a rua e o sol livre esquecendo – propositadamente, embora desconhecesse meus propósitos com aquilo – o portão de grade aberto; é que, na verdade, tudo na frente era uma grade (e naquele momento) (uma frente que ficava para trás)(na sombra)(minha). Ainda na rua, antes de chegar ao pasto, despejei minha sobra orgânica (que de outro modo seria lixo) no meio-fio e parei um pouco passado de dois pedreiros que construíam uma casa num terreno onde todos os muros com exceção do frontal já haviam sido construídos – pelo mesmo “mestre”, como fui saber adiante. Dali para frente começava o pasto a margear a rua pelos dois lados, o sol me atingia na posição de duas horas, bem em cheio na mão que transportava os gomos da outra à boca e o meu resto orgânico para a direção decidida (e não vou entrar no mérito dessa decisão). Virei para esse lado uma meia volta e iniciei uma conversa com o pedreiro que trabalhava o cimento num canto da rua. Conversamos sobre o dono da casa e sua família, depois falamos sobre o que cada um fazia da vida, e por fim sobre a própria vida: a importância do dinheiro, as escolhas que a compõem. Essa conversa, claro, durou mais que o tempo de comer uma mexerica, durou até acontecer d’ele comentar que estava com pressa porque ainda tinha que pegar a filha na escola e eu, que antes desse comentário havia dito algo sobre a segurança que tive ao viver naquele rua, observar meu portão aberto e me despedir prometendo recomendá-lo a um pequeno empreiteiro conhecido meu. Caminhei de volta, já sem nada para dificultar a abertura do portão por estar ocupando minha mão (embora, sim, o portão já estivesse aberto), já sem ofuscar meus olhos que miram minha sombra, as mãos fechando o portão, o sol poente intercalado pelas sombras verticais da grade e minha própria sombra se unindo à sombra da casa.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Qualquer dia

Estranha essa coisa de “isso poderia ter acontecido qualquer dia” (ou na versão sic: “isso podia ter acontecido qualquer dia”). Você está saindo de carro; no dia anterior seu seguro venceu. A primeira coisa que você irá fazer é renovar o seguro (e quanto a isso você nunca teve qualquer dúvida). Você, saindo da garagem, entra de ré num carro que está passando; ou, na versão diet: num motoqueiro maluco; na versão light: num ciclista que vinha na contramão; e, na versão zero: um flanelinha correndo para extorquir outro motorista (embora donzelas-culpadas sempre busquem esses tipos para os defenderem do mundo cruel – ao qual pertencem - afirmando que o atropelado já é flanelinha ali há mais de dez anos, bem antes d’eu pensar em frequentar aquela rua, que ele, enfim, já é quase da família). Enfim: você mete a bunda do seu carro em alguém no único dia em que ele ficou sem seguro em toda sua vida pós-montadora e, provavelmente, também o último dia de toda vida pré-desmanche. Era, portanto, o único dia em que exatamente isso poderia acontecer: como, então, “isso poderia ter acontecido qualquer dia”?

terça-feira, 17 de abril de 2007

Ela é bela


Se eu lhe disser que sua beleza não é absoluta, esse é o meu maior elogio. A beleza assim, pura e grandiloqüente, é destinada às estátuas; elas não têm vida, são moldadas, planejadas e executadas e, por fim, não se alteram diante dos terrores e dos prazeres que dançam aos seus pés; a única mudança que aceitam é a destruição: um vândalo lhe martela o rosto, que se estilhaça pelo chão como lascas e restos, e não mais como estátua. Ela não iria querer isso de mim; sua beleza vai até o ponto de se permitir, sem se perder, pequenas mudanças cotidianas. Seu rosto cresce com o sono e com o choro, deforma-se lindamente num sorriso ou na carência. Sua beleza não se impõe como sombra, nem imobiliza a vida. Sua beleza evolui; dissolve-se, envolve e toma fluidamente todo o meu espaço.

(Mote: Virginia Woolf, Passeio ao Farol, e, de certo modo, uma reedição repensada)

terça-feira, 3 de abril de 2007