domingo, 16 de setembro de 2007

Arte genética

Os ensaios e manifestos de Kac, datados dos anos 80, primeiramente
mostram que ele está ciente de uma dívida. Sob a sua autoria,
as fórmulas extraídas de Lyotard e Barthes (“gramática libidinal"
ou o termo pornograma, que designa uma “fusão do corpo e
do discurso" [8], por exemplo) incorporam sua prática a um movimento
global que, nos anos 70, sonhara em rejeitar todas as formas
de censura para transformar a expressão lingüística das pulsões em
marca de um discurso atribuível ao corpo, antes de reconhecer as
aporias de tal projeto. Por sua vez, os holopoemas posteriores de
Kac imitam certos comportamentos dos seres vivos, notadamente o
movimento. Entretanto, a sua incorporação ainda permanece inviável,
de modo que a declaração de Jean-Luc Nancy continua plenamente
válida. O mesmo não ocorre com as obras às quais, desde
1998, Kac se refere como “arte transgênica". Entre elas, Genesis
(1999) constitui a um só tempo uma culminação e um caso limite
para o “programa" mencionado por Nancy, à medida que a natureza
corporal do texto deixa de ser metafórica. Para esta obra, que
é simultaneamente trabalho de escrita, criação visual e intervenção
biológica, o artista escolheu o versículo bíblico no qual Deus estabelece
a supremacia do homem sobre o reino dos seres vivos,
dizendo ao casal original: “Tenham poder sobre os peixes do mar,
sobre as aves que voam no ar e sobre os animais que se arrastam
pelo chão" (Gênesis, 1:28). Kac transpôs estas palavras em Morse,
cujos sinais então substituiu pelos diferentes nucleotídeos que constituem
o DNA até obter um gene artificial, não-funcional, mas
passível de ser integrado tecnicamente à herança de um ser vivo.
Não contente em produzir, desta forma, uma série de versões equivalentes
de um mesmo texto, ele sintetizou e – por meio da intervenção
de um procedimento viral – inseriu a fórmula molecular no
genoma de uma bactéria. Esta foi então cultivada em condições
favoráveis ao surgimento de mutações, tão bem que no curso de
algumas gerações a estrutura correspondente à fórmula genética
começou a apresentar variações em certos indivíduos. Estes, na
transcrição inversa, apresentaram modificações na seqüência textual
original, resultando em algo como: “Teenham poder sobre os
peixes do mar, sobre as aves que voam no ar e sobre os animais
que se aerastam pa cl chão." A palavra divina sobre a criação tornou-
se assim objeto de uma encarnação que repete o fiat: Kac
inscreveu a frase no interior de um organismo primário, unicelular,
para poder generalizá-la à semelhança do ser vivo. Desta vez, um
verbo serviu para bem (re)fazer a carne. O corpo revelou-se como
lugar de uma escrição, onde não se trata mais simplesmente de tatuar,
escarificar nem mesmo gravar as entranhas dos signos simbólicos.
A carne deixa de ser suporte para ser a própria matéria da escrita.


Do aqui já famoso Suplemento...

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