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“Os Cus de Judas”, livro do premiado António Lobo Antunes, trata da experiência do personagem-narrador na guerra de Angola. Uma matéria na revista “Língua Portuguesa” (link para assinantes UOL ou da revista) me despertou o interesse na história, ao defini-la como um “anti-épico”. Ou seja, o narrador, um médico português servindo na África, se põe implicitamente como um antagonista do velho Camões. A guerra o faz enxergar (e narrar) as coisas patéticas intrincadas no dia-a-dia e no passado do português; a arquitetura, os hábitos, os anseios: todos os ingredientes que formam o sentimento de sociedade lhe surgem como premissas de reflexão. E tudo isso, se por um lado vai lhe despertar a nostalgia do sossego provinciano de Lisboa diante da confusão e violência da campanha africana, por outro o fere e incomoda; se une ao absurdo da guerra como uma mancha no seu sangue lusitano. Lobo Antunes, portanto, transpõe o conflito angolano para outras dimensões: em primeiro lugar, para as atitudes do país ao qual pertence, ratificada por seus cidadãos (afinal, Salazar venceu como o maior português da história... ); em segundo, a própria luta individual gerada pelos sentimentos nacionalistas e saudosistas contra as decepções e as incapacidades que lhe vão sendo estampadas pela vida conforme se constrói a inevitável solidão (caindo num estilo Campos de Carvalho, como no trecho abaixo). Se, como o médico convocado, deixa o país para ir à distante África e retorna depois de muito tempo, seus sentimentos também realizam o mesmo movimento. Deixam o âmbito familiar acolhedor, quase sufocante, para cair no imenso vazio de Angola e se deparar com a morte, o sofrimento e relações humanas paradoxalmente superficiais. De volta à Portugal, vive sozinho, tendo relações igualmente superficiais com mulheres transitórias; quer a família, aquela de hábitos tão conservadores e ridículos. Espera ela de volta como quem deseja reencontrar a velha pátria imaginada, o antigo casamento feliz, tudo o que foi desmascarado pela realidade de um conflito.
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Depois, li “Os Sertões” (“A Luta”), do Euclides da Cunha, cujas apresentações seriam dispensáveis. Só li agora pois, ao estudar um pouco da literatura brasileira num desses volumes didáticos, me deparei com um trecho tocante descrevendo a suposta rendição dos sertanejos na tal guerra de Canudos (ver trecho abaixo). O que posso dizer? Vale o adjetivo de monumento. O livro fala da campanha republicana contra a “cidadela” do Conselheiro, por ele chamada de “Belo Monte”, com o rigor de um jornalista com experiência na carreira militar. E a sensibilidade de um escritor. Ao mesmo tempo em que descreve e analisa com precisão técnica os movimentos (errados na maioria) do exército brasileiro e a geografia do “palco de ação”, não deixa de lado os diálogos travados nas linhas de combate, os sentimentos dos homens diante das diversas situações apresentadas pela batalha e o imenso disparate que era aquilo tudo. A narração não busca filosofias; o autor não deseja transformá-la na sua visão pessoal do acontecimento. Como esclarece na introdução, quer ser o narrador sincero da História, denunciando ao mundo o crime que ali se cometera. Até onde isso for possível, parece alcançar seu objetivo. É espantoso como consegue manter austeridade enquanto disserta, por exemplo, sobre “a psicologia do soldado”: busca todos os detalhes possíveis para que o leitor tenha a mais completa idéia do que ocorreu. Está certo de que os fatos por si só são suficientes para deixar indubitável a insensatez de se combater o fanatismo do sertanejo, miserável que é, trucidando milhares deles em nome do fanatismo à recém criada República. Euclides parece dizer ao leitor de hoje que há muito tempo o Brasil trata o erro dos desamparados com o erro dos “doutores”: não inclui, combate; derruba e não os ajuda a levantar.
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Em seguida, “A Cavalaria Vermelha”, do russo Isaac Babel, reunindo contos baseados na época em que o autor lutou a campanha russo-polonesa de 1920. O título, com a nova tradução publicada recentemente pela Cosacnaif na coleção “Prosas do Mundo”, diretamente do russo para o português, virou “O Exército Vermelho”; a minha pobre versão ensebada tem lá suas origens no final da década de 1960, publicada pela editora Civilização Brasileira. Encontrei-a num sebo em São Paulo depois de sofrer uma tragicômica chuva de livros ao tentar tirar, de uma pilha enorme e mal equilibrada, um título do Garcia Márquez. Naquele monte esparramado no chão, lá estava. O preço me resignou em não ter a nova tradução, por ora. Sobre ele? Há muito lugar comum ao falar sobre o livro e eu não vou fugir deles aqui. O que mais espanta é a capacidade do autor em narrar a luta – travada, o que é pior, entre os sanguinários cossacos – com um estilo naturalmente lírico. A morte se iguala ao aparecer de uma estrela no céu. Os piores momentos são campos de trigo e cevada iluminados pela aurora. Parece que, no fundo, Babel faz da guerra um simbolismo qualquer. Ele, um jovem judeu intelectual em busca das provações capazes de transformá-lo em adulto, só deseja ser capaz de matar um homem. É como um adolescente virgem em busca da sua primeira vez, uma menina atrás de seu príncipe encantado, a dona-de-casa diante do bolo queimado no forno. O perigo real da morte vem por meio de uma narrativa cômica, atributo inevitável diante da mistura entre morte, violência, lirismo e humor (como no trecho abaixo).
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Todos os três, portanto, falam explicitamente da guerra. Talvez eu devesse me alistar, se ainda é tempo, mas não creio seja esse o caso. Por sobre as profundezas do meu inconsciente, garanto, é tudo uma coincidência. Coincidem, aliás, num ponto interessante: extraem do non-sense da guerra o burlesco. Em geral, sentem alguma necessidade de atenuar o horror com o humor (perdão pela rima), muitas vezes entrincheirado, camuflado, um humor soldado disparando contra seus leitores.
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TRECHOS
“Os Cus de Judas”, p. 148-149:
“(...) Não, a sério, a felicidade, esse estado difuso resultante da impossível convergência de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo satisfeito e sem remorsos, continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre, qualquer coisa de tão abstracto e estranho como a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloquentes, profundos e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o Estado me haviam solenemente impingido para melhor me domarem, para extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os meus desejos de protesto e de revolta. O que os outros exigem de nós, entende, é que os não ponhamos em causa, não sacudamos as suas vidas miniaturas calafetadas contra o desespero e a esperança, não quebremos os seus aquários de peixes surdos a flutuarem na água limosa do dia-a-dia, aclarada de viés pela lâmpada sonolenta do que chamamos virtude e que consiste apenas, se observada de perto, na ausência morna de ambições.
“Quer um uísque? (...)”
“Os Sertões”, p. 263 (versão eletrônica baixada da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro):
“(...) Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra – a velha mais hedionda talvez destes sertões – a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas, emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra – rompia, em andar sacudido, pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.
“Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha. Lá se foi com o seu andar agitante, de atáxica, seguindo a extensa fila de infelizes... (...)”
“A Cavalaria Vermelha”, p. 76:
“(...) O Cavalo do chefão era mesmo uma beleza, mas parecia estafado. Então o Pan general alveja-me com a sua Mauser e faz um buraco em minha perna.
“- Está bem – pensei – vou fazê-lo espernear aqui mesmo.
“Assim, trato de agir e cravo duas balas no cavalinho. Tive pena do garanhão. Era um pequeno bolchevista, aquele garanhão, castanho, luzente como uma moeda de cobre, com uma bonita cauda e jarretes que pareciam cordas. Eu tinha pensado: Vou levá-lo vivo para Lênin. Mas tal não aconteceu, matei o cavalo, que caiu de costas, como uma recém-casada, e o general caiu da sela. Pulou de lado e atirou novamente. Assim, agora eu me distinguiria três vezes na ação.
“- Jesus – pensei – ele pode matar-me por engano.
“Galopei em sua direção, e ele já tirara a espada. As lágrimas escorriam-lhe no rosto, lágrimas brancas, verdadeiro leite humano.
“- Por sua causa vou ganhar a Ordem da Bandeira Vermelha – grito. – Mãos ao alto, estou vivo, excelência. (...)”
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