sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

usualmente almoçávamos juntos e terminávamos a refeição comendo algum doce familiar típico: compota, calda, leite, com queijo, fruta, algo. também era usual não levantarem todos ao mesmo tempo, primeiro mamãe que gostava de ir ajeitando as louças para a empregada lavar, e logo papai que tomava sempre um copo d’água na talha. eu pegava minha parte da sobremesa e ia sentar no parapeito da porta, que é parapé na verdade, quando era sol de inverno; não esquentava mais do que o confortável e o movimento da rua não era tão intenso a ponto de confundir os pensamentos: horário perfeito de contemplação. eu bem o sabia, ainda que fosse inconscientemente, e ali estava para tanto: contemplar a natureza – humana ou não. ralhava com um, cumprimentava respeitosamente outro; eram as minhas faces, unidas no meu interior, manifestando-se com tratamentos personalíssimos: um luxo, como dizem. talvez fosse a meia hora mais comprida que se pode ter na vida, essa que passa próxima ao meio-dia de um dia de começo de inverno, quando se está contemplando do parapé. contemple, é o que digo; com o passar dos anos, numa cidade pequena como a minha, o mundo parecerá tão outro que será sempre o mesmo: a unidade. a não ser que lhe ocorra o que me ocorreu, e a muita gente, um certo dia.
tomei um pêssego, segui calmamente para a porta dando a primeira mordida e sentei mastigando, com olhar ainda perdido e se acostumando com a claridade. pouco depois surgiu a dois quarteirões acima um senhor, vestido normalmente, camisa, calça, sapatos, barba aparada, cabelos penteados, e era tudo o que podia ver dali; ouvir ouvia mais, e afinal ele berrava sem pudor, característica que sempre invejei nas pessoas realmente corajosas e despojadas, berrava para todos que encontravam, um a um, - você é feliz? e repetia mais incisivo, talvez inquisidor, inclinando-se para frente e ameaçando com o dedo, - é feliz? e então, diante do silêncio, caía na risada, uma risada autêntica posso assegurar. os transeuntes regularmente o ignoravam cuidando se tratar de mais um louco, embora sua aparência não fosse para tanto; e a cada rosto que lhe era virado, ele repetia para si mesmo, com voz chorosa, também autêntica, transformando o riso em um gesto de conformação tristonha, - é triste!
era um acontecimento ao menos engraçado e fiquei ali esperando minha hora; ele vinha subindo a rua e inevitavelmente passaria por mim, e também inevitavelmente me lançaria a pergunta: o que eu responderia? sou feliz, pensei, devo ser, com esse sol, esse pêssego, esse parapé, devo ser feliz, não há como não ser; mas brequei meus pensamentos, - vai explicar! mas eu é que não queria ser tomado como triste, assim no meio da rua, ainda mais por um louco, que têm a fama de serem honestos; bem capaz! diria, - claro!, e ainda o ofereceria o que ainda houvesse de pêssego, esticando meu braço com a fruta na mão. sim, seria a resposta perfeita.
enquanto isso ele ia repetindo, cada vez mais insistente – chegava a repetir umas três vezes, - é feliz? – e cada vez mais choroso: chegou a sentar por alguns minutos na calçada, pareceu-me chorar de verdade. seria ele triste diante da tristeza dos normais? seria uma boa lição de compaixão, refleti. então do que vale a felicidade se não se pode compartilhá-la? aquele sujeito devia apenas ser louco na medida do desembaraço; tinha consciência da realidade e dos sentimentos, só não hesitava nas suas manifestações. mas, enfim, seria ele feliz? é isso, responderia perguntando a mesma pergunta, o que me soou um pouco clichê, mas tinha lá seu significado. o pior mesmo seria as pessoas presenciarem meu diálogo nivelado por ele; isso certamente iria comprometer minha imagem com o dono da farmácia, onde eu trabalhava, e com certeza iria chegar aos ouvidos dos meus sogros: a gente da cidade não iria aceitar muito bem aquilo. ademais, meus pais ouviriam lá de dentro minha conversa, causaria crise em casa: mamãe zelava muito por essas coisas, papai também.
tive um ímpeto de sair e ir assistir televisão, ficar a par das notícias era uma boa desculpa para mim mesmo, inclusive autorizada pelos outros. até a empregada iria zombar comigo, abriria precedente até para isso: a empregada! oras, mas foda-se! pensei, o sujeito não era louco, talvez sofria de excesso de compaixão, ou felicidade, ou ambos. não há que se recriminar um sujeito por isso! mas vai explicar...
enquanto isso, ele vinha se aproximando implacável, todo rosto lhe correspondia uma oportunidade à pergunta e a posterior consternação lacrimosa: éramos tristes... eu não! tinha boa namorada, acho até que nos amávamos, andamos falando muito em filhos, tínhamos planos; além de um emprego onde podia ter um futuro: era o que todos me faziam crer, ao menos. o sol começava a ficar inexplicavelmente mais quente, fazendo escorrer-me suor pela testa e pela barriga; que diabo de apurrinhação das idéias é essa?! pensei perdendo minha paciência comigo. mas não conseguia chegar a uma conclusão que me parecesse aceitável. tentei me acalmar para clarear as idéias: tenho três opções, convim, fico ou saio; se fico, respondo ou ignoro. pronto, por que não faço o meio termo? fico e ignoro! mas não, eu não sou triste, não tem meio termo, os outros sim que devem ser, sempre me pareceram, mas eu que nunca me pareci, nem creio que aos outros. parece, aliás, que ele está perto demais, - ser ou não ser, então ri, depois me culpei: rir nessas horas, oras! oras por horas, é hora de decidir: comecei a ficar sério novamente.
- você é feliz? ele olhou uns olhos que jesus deve de ter olhado de cima da cruz, - é feliz? insistiu, apontando-me o dedo, e assim ficou: não lhe ignorei, simplesmente olhei nos seus olhos, que é o que me peguei fazendo ainda um minuto depois, durante o qual ficamos ambos paralisados. não sei que me tinha no meu olhar, mas ele não insistiu, ficou parado; não era assustador, como imaginara: era cúmplice, parecia esperar meu sim para vir me abraçar com um pai que encontra seu filho. pode ser, pensei, mas não falei porque ninguém pode ser que seja feliz; feliz ou se é ou não se é. silêncio demais é hesitação, continuei pensando, mas fiz jeito de deixar meu semblante do mesmo jeito durante todo o tempo, o que me demandou algum esforço e me deixava ainda uns segundos sem pensamento. então respondi, muito naturalmente para meu espanto próprio, - sim, sou, emendei com uma mordida na última parte maçuda do pêssego, e respondi de boca-cheia, - por quê?, - porque, ele concordou e disse, - porque..., esperando o complemento.
ainda naturalmente, levantei-me como quem não tem mais tempo para uma conversa, era só um gesto que tentei imitar, e disse, - vai saber, uai, virei as costas, fechei a porta e me soltei meu corpo no primeiro sofá que encontrei, suspirando. no silêncio, ouvi os passos do senhor, uns passos lentos, bobos, e cúmplices do seu próprio silêncio.
a empregada entrou na sala, - que é aí?, como que achando que era assunto para ela. levantei do sofá me dirigindo a ela, coloquei o caroço do pêssego na sua mão e murmurei, - esse povo: cada pergunta!, e virando para ela perguntei, - e você, é feliz?, - ora, senhor! ela respondeu, - só deus sabe!, - então, respondi encerrando o assunto, - ele que tava aí, andou perguntando pra todo mundo; cada pergunta, né não? mas é bom, você já fica avisada, vai vendo aí..., - eu hein, ela resmungou, voltando para a cozinha para jogar o caroço no lixo, enquanto eu ia para o meu quarto, rindo.

a pergunta

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