sexta-feira, 27 de abril de 2007

Esclarecimento Necessário

Vestir o pensamento
Aconteceu uma vez de eu chegar num colégio em Belo Horizonte, onde me perguntaram o que eu estava escrevendo naquele momento. Eu falei sobre o projeto e nunca mais consegui retomá-lo. Porque quando você fala sobre algo, dá uma roupa feita de palavras ao seu pensamento. E aí, ele já assumiu aquela roupa. E não veste mais aquela outra, a que vestiria se fosse direto para a página. Então aquilo se gasta. Se desperdiça. Não sei se é assim com todos os escritores.

(Ana Maria Machado, no Rascunho)

Corto ma non troppo

A Clarah foi um susto. Chegou de uma sombra armada pelo telhado de um ponto de táxi numa rua do centro, como a lua que aparece atrás de uma nuvem espessa. Podia estar vomitando, mas foi tudo silencioso; o antes, o durante e o depois. Saiu escorrendo a boca nas costas da mão, mas podia ser culpa de uma lata de cerveja. Não sei se a Clarah jogou a lata na rua ou a colocou carinhosamente em cima do banco dos taxistas. Ou se simplesmente estava vomitando. Podia estar chorando, porque veio de um vácuo apinhado de coisas ausentes. Na verdade, a Clarah poderia nem ter vindo, teria ficado bem ali. Muito bem, aliás. Podia ficar tranqüilamente doze horas sem escovar os dentes e em dez minutos explodir com a ânsia do áspero na boca, arrebentando de amores por escova e pasta; aquele amor intenso cuja consciência do ralo não existe. Mas ela nem usaria uma trema e talvez escovasse militarmente os dentes. A Clarah pode escrever em italiano, pode citar de cabeça um trecho obscuro de um cantor espanhol que nunca ouvi falar, mas não sei se escreveria com trema. A Clarah virou a esquina como quem vai correr em seguida, dar a volta no quarteirão e aparecer do outro lado esbaforida e sorridente. Quando desapareceu na borda do prédio antigo, corri para alcançá-la, mas a Clarah se foi de novo pela escuridão.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Molto Corto

Tinha a nossa música. A gente não sabia cantar tudo; na verdade, sabia a mesma parte. Tive que terminar com ela, não agüentei, depois só tinha o silêncio.

lugar-comum

sábado, 21 de abril de 2007

Con-tener

É a série de uma amiga madrileña que conheci em Budapeste (onde pude presenciar seu jeito bem interessante de trabalhar com a fotografia). Ela fez a sua própria câmera (uma caixa de madeira, basicamente) e ultrapassa muito a nossa idéia de 35mm+revelação.

Faz parte de um coletivo chamado El Carromato e tem um blog (link ao lado = Cloroplatinito). De acordo com a última nota de atividades do coletivo,



Ana Matey exponía [ na Jornada de Puertas Abiertas de 30 de março] una muestra de su actual línea de creación, utilizando técnicas mixtas de fotografía y pintura en obras únicas, mostrando imágenes corporales que tratan de expresar la soledad de la persona y sus dificultades de relación y comunicación social. Para ello utiliza muy variados formatos, unidos en su presentación con el sugerente titulo “con-tener”.



Aí vai um exemplo do seu trabalho que, para mim, abriu as portas das possibilidades da fotografia.


sexta-feira, 20 de abril de 2007

Corto

Inventei a máquina do tempo. Tive dúvida se ganharia na megasena ou se salvaria meu amigo do atropelamento. Comprei um rifle de precisão com mira telescópica, muita munição e me mandei para Canudos. Esperei todas as expedições me fingindo um jagunço doente e louco. Armazenei bastante mantimento. A última estava ocupando já metade do arraial. Iam se espreitando como formigas no formigueiro alheio. Fui para um local adequado e comecei. Até agora conto cento e vinte e dois oficiais mortos. Estou ansioso para a minha primeira leitura do tal Euclides. Esse eu preservo.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Molto Corto

Era um momento delicado. Estavam todos contra mim. Ele teve a coragem maravilhosa de se colocar na frente da multidão que queria meu sangue. Tinha de agradecê-lo, sou generosa, dei pra ele.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Ela é bela


Se eu lhe disser que sua beleza não é absoluta, esse é o meu maior elogio. A beleza assim, pura e grandiloqüente, é destinada às estátuas; elas não têm vida, são moldadas, planejadas e executadas e, por fim, não se alteram diante dos terrores e dos prazeres que dançam aos seus pés; a única mudança que aceitam é a destruição: um vândalo lhe martela o rosto, que se estilhaça pelo chão como lascas e restos, e não mais como estátua. Ela não iria querer isso de mim; sua beleza vai até o ponto de se permitir, sem se perder, pequenas mudanças cotidianas. Seu rosto cresce com o sono e com o choro, deforma-se lindamente num sorriso ou na carência. Sua beleza não se impõe como sombra, nem imobiliza a vida. Sua beleza evolui; dissolve-se, envolve e toma fluidamente todo o meu espaço.

(Mote: Virginia Woolf, Passeio ao Farol, e, de certo modo, uma reedição repensada)

segunda-feira, 16 de abril de 2007

domingo, 8 de abril de 2007

Resumo da Tragédia Humana


Foto do Marco (não consegui achar a postagem antiga...).

quinta-feira, 5 de abril de 2007

terça-feira, 3 de abril de 2007

Literatura jornalística

O samba do soldador
Da Redação

Na tragédia do afundamento do buraco no metrô de São Paulo, emergiram como culpadas as empreiteiras: os novos bodes brasileiros. Câmeras escondidas na bolsa, manchetes explosivas e mais uma nova classe de termos para o nosso léxico de desgraças: bacalhau agora também é o que já foi a popular gambiarra. Do mesmo modo, surgiu uma nova profissão na lista negra dos profissionais do Brasil, que volta e meia inclui jornalistas, advogados, policiais e médicos; soldador ainda era inédito.
Jadiel* nasceu no interior de Pernambuco em 1971. Sua família vivia próximo a um engenho, onde prestavam todos o membros o serviço de bóia-fria. “Com o programa do álcool”, ele diz, “todo mundo teve trabalho, ganhou muito dinheiro. Dava até pra comer carne no almoço de domingo”. Mas depois as coisas foram piorando e, assim que Jadiel terminou a 8ª série, ou o ginásio da sua época, atendeu ao convite feito por uma prima ao seu irmão mais velho.
Em São Paulo foi se arranjando. Logo entrou no ramo da construção civil como auxiliar de um pedreiro que se simpatizou com ele. Mais tarde, aprendeu o ofício da solda e, com a nova técnica, conseguia arrumar serviço nas grandes obras tocadas pelas grandes empreiteiras.
“Não tem muita diferença entre construir casa de madame no Morumbi e uma estação de metrô”, afirma. Conta preferir “casa de madame” e justifica-se: “às vezes, a empregada vem trazer suco, café, lanche pros peões da obra, além da bóia, claro”.
Questionado sobre os problemas nas soldas da estação Fradique Coutinho do metrô, em São Paulo, onde trabalhou, Jadiel se mostra sinceramente alterado.
“Não entendi aquilo tudo. O senhor sabe, eu leio e assisto o noticiário. Sei ler e sei pensar, também. Muita gente por aí nem isso faz, não pensa, não quer saber, mas eu sim. Eles metem o pau nos bacalhau [sic], aqueles técnico contratado [sic], aqueles jornalista [sic], mas na casa deles aposto que é igual, que preferiram pagar menos pra fazer bacalhau do que a coisa certinha [sic]. Todo mundo faz bacalhau no Brasil, não faz? Não tem aquilo de jeitinho brasileiro? O Lula não veio falar em projeto pro Brasil crescer mais e tal? A Marta não fez um monte de escola por aí com latão? O Governo não foi tapar buraco no ano passado por causa da eleição, e jogou um piche com brita lá, jogou qualquer coisa que já tá tudo uma merda? E etc. etc. etc.? Olha, é tudo bacalhau, meu filho, tudo bacalhau. O Brasil é um bacalhau que só. Eu sou um bacalhau e tu provavelmente também é. Afinal, por que fui virar soldador? Um dia faltou o cara, me chamaram, me disseram ‘olha, faz assim e assado’ e pronto; em dois tempo eu já tava nas grande, aí [sic]. Aqui é assim, tá precisando a gente é, a gente é o que tá precisando, entende?, o que não deixa de ser um bacalhau, não é?”
E emenda com um repentino bom humor:
“Olha, e pra não dizerem que só fico falando mal, que fico de rancor, um dia aí tive até uma hora que fiz um sambinha com essa história toda que estava me aporrinhando, pra aliviar um pouco, né? É assim: (cantarolando) No Brasil, não tem baixo-astral/ Se o dinheiro não deu/ o financiamento não saiu/ faltou peça na caranga/ ou a comida da janta/ não faz mal/ não faz mal/ por aqui nós fazemo [sic] um bacalhau”.
E ele ri.

* Nome fictício.

O Beijo (escultura)