sexta-feira, 27 de abril de 2007

Corto ma non troppo

A Clarah foi um susto. Chegou de uma sombra armada pelo telhado de um ponto de táxi numa rua do centro, como a lua que aparece atrás de uma nuvem espessa. Podia estar vomitando, mas foi tudo silencioso; o antes, o durante e o depois. Saiu escorrendo a boca nas costas da mão, mas podia ser culpa de uma lata de cerveja. Não sei se a Clarah jogou a lata na rua ou a colocou carinhosamente em cima do banco dos taxistas. Ou se simplesmente estava vomitando. Podia estar chorando, porque veio de um vácuo apinhado de coisas ausentes. Na verdade, a Clarah poderia nem ter vindo, teria ficado bem ali. Muito bem, aliás. Podia ficar tranqüilamente doze horas sem escovar os dentes e em dez minutos explodir com a ânsia do áspero na boca, arrebentando de amores por escova e pasta; aquele amor intenso cuja consciência do ralo não existe. Mas ela nem usaria uma trema e talvez escovasse militarmente os dentes. A Clarah pode escrever em italiano, pode citar de cabeça um trecho obscuro de um cantor espanhol que nunca ouvi falar, mas não sei se escreveria com trema. A Clarah virou a esquina como quem vai correr em seguida, dar a volta no quarteirão e aparecer do outro lado esbaforida e sorridente. Quando desapareceu na borda do prédio antigo, corri para alcançá-la, mas a Clarah se foi de novo pela escuridão.

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