terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Nota de Desaparecimento

Da Redação

Desde o dia 04 de dezembro está desaparecido Galberti Mainardi, 26. Pedimos aos que souberem de qualquer informação que leve à solução de seu paradeiro, que entrem em contato com a redação. Será recompensado.
Galberti foi visto, pela última vez, por um taxista que o deixou na procissão de Santa Bárbara, ocorrida na manhã daquela segunda-feira, na cidade de Patchuco. A foto divulgada pelas autoridades locais mostra a procissão que contou com algumas dezenas de pessoas. O motorista que o conduziu do hotel ao cemitério de onde saiu a procissão, interrogado pela polícia, relatou que o escritor vestia uma jaqueta cor káki, uma calça preta de moletom com os vincilhos desamarrados e levava consigo uma maleta de couro marrom. Disse, ainda, que levava um ar de preocupação e parecia atabalhoado. A queixa de desaparecimento foi dada à polícia pelo gerente do hotel em que Galberti se hospedava, que notou a ausência do hóspede na manhã da quarta-feira. Galberti era devoto de Santa Bárbara e supostamente voltava a Patchuco para agradecer uma graça alcançada.
As autoridades, no entanto, suspeitam que as ligações de Galberti com o escritor e jornalista de sobrenome homônimo, Diogo Mainardi, pode ter sido a causa de um suposto crime de vingança, mas ainda não têm qualquer indício sobre o parentesco ou mesmo sobre a relação entre ambos polêmicos escritores.
Outro linha investigativa seria uma secreta ligação mantida entre Galberti e a poderosa máfia local de Patchuco. Comandada pelo Señor Alvarez, el Chuco, essa organização criminosa domina o cartel mundial de suprimentos para máquinas de datilografar, além do concorrido mercado de antigüidades gráficas. O mais recente levantamento das autoridades locais estima que o Cartel de Chuco movimentou em suas contas espalhadas pelo mundo valores superiores a milhões de dólares, em 2006, contrabandeando, inclusive, cerca 3 mil unidades de fitas-refil para datilográficos de todo o mundo. A participação de Galberti no esquema, entretanto, ainda é obscura e incerta.
Alguns amigos mais próximos não descartam a possibilidade de Galberti ter forjado seu próprio desaparecimento. Eles relatam que ultimamente o escritor vinha apresentando períodos longos de ausência e, contrariando sua natureza, deixava freqüentemente crescer sua barba e seus cabelos.
A redação conversou com um colega do desaparecido, que preferiu não se identificar. Ele confessou que sua opinião particular é de que a solução do caso reside em duas probabilidades.
A primeira é de que Galberti teria se ensandecido com a leitura diuturna de clássicos russos e partiu para Kiev acreditando ser ele mesmo algum escritor cujo nome termina em -ski - em sua época psicológica, Kiev ainda pertencia à Rússia. Ele reforça essa possibilidade com um diálogo que teve com o procurado há aproximadamente uma semana antes da viagem à Patchuco.
Durante a conversa, Galberti teria contado, de forma estranhamente apaixonante, o modo como Trótski morrera em sua casa, golpeado na cabeça por um piolet. Galberti estava começando a escalar. Estaria ele tentando redimir a vida e a morte do escritor russo, outro famoso devoto de Santa Bárbara? O colega acredita que não: segundo ele, Galberti tinha aversão a marxistas.
Ele acredita na segunda possibilidade: Galberti nunca existiu e foi ao cemitério para, então, nascer. O amigo compreende a dificuldade de se entender tal afirmação, mas lança uma bomba: "Galberti nunca foi um sujeito descomplicado". Ele acredita, pela leitura dos escritos deixados pelo escritor, que este vivia em um estado psicológico de não-ser e que só poderia se libertar da inexistência e adentrar num mundo de opostos, onde finalmente poderia ser reconhecido como o que realmente viria a ser, quando provocasse em si mesmo o que chamava de Salto Dialético. Ele conecta diversos indícios da obra e da vida do escritor que apontam para essa possibilidade:
- Galberti exercia trabalho voluntário na favela de Heliópolis.
- O escritor queria ser, na verdade, um famoso escalador.
- O desleixo com a barba e o cabelo seriam, na verdade, um recado do seu Id de que queria ser decapitado, ou seja, romper seus laços com o Grande Pai e a Grande Mãe e, assim, finalmente ser tido como um ser que realmente se é.
- Sua banda musical preferida é o praticamente desconhecido trio de música experimental chamado "Hegel e o Salto Dialético".
- Um de seus famosos contos fantásticos narra a história de um homem rico sendo frito (fried-rich) pelo Rei Guiherme VI (Wilhelm) em uma grill George Foreman Jumbo (Georg): o nome completo de Hegel era Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Coincidências ou premeditação, é algo extraordinário, como tudo aquilo no que Galberti se envolvia (inclusive este site). Até o momento, as investigações das autoridades de Patchuco prosseguem sem qualquer pista concreta.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Reflexões úteis sobre a cidade de agora e a do futuro


Suplemen+o Literário de Minas Gerais

Trechos de A memória como fundamento da cidade futura,
de Carlos Antônio Leite Brandão

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."
(CALVINO, Italo. As cidades invisíveis)

"Comecemos por ver as imagens do futuro da cidade que a ficção nos relata. Em Blade Runner, de Ridley Scott, vemos um espaço público cinzento e decrépito sob a chuva ácida. Todo encontro com o outro é monosilábico e áspero, todo diálogo é evitado no meio do tédio que se expressa nas feições dos pseudo-cidadãos, habitantes de um espaço comum mas que com ele não se sentem comprometidos. (...) Exilados de um destino comum, esses pseudo-cidadãos também não têm memória e um patrimônio compartilhado: não se constituem como membros de uma res publica, mas como seres atomizados numa massa desnorteada, desmemoriada e sem liberdade. A Los Angeles de 2019 figurada na película é o território tumultuoso onde outrora havia cidade e cidadãos e que se tornou uma somatória de guetos e replicantes. Governada pela economia e pela técnica, as leis que a regem não se engendram são-nos impostas: somos, novamente, servos dentro de um espaço composto por feudos e onde o mundo público converteu-se na escória do universo privado. Ele não é mais o abismo onde se enterrou toda memória, toda festa e toda troca de experiências concretas."

"(...) A cidade do futuro, antes pensada em torno de um ideal ou de uma utopia, passou a ser tratada como o supermercado do gozo e como objeto de satisfação e necessidade, não de liberdade."

"(...) A cidade constitui-se como o espaço do diálogo e do encontro com os outros do espaço (dos vivos e contemporâneos) e do tempo (os mortos e os que irão nascer), interlocutores sem os quais não há república, não conquistamos nossa identidade individual e coletiva, não desenvolvemos nossas potencialidades e o sentido de nossa existência. (...) Esse encontro é um encontro entre os heterogêneos que a cidade deve produzir e abrigar, e a partir dos quais realizo minhas escolhas. O encontro entre iguais - como tribos, gangues, condomínios fechados e comunidades restritas; como as dos shoppings, café-bar, clubes e pubs de toda espécie mas nos quais, como ordens religiosas, só interagem os semelhantes - não constitui a pólis e o máximo que se instaura e a sociabilidade de comunidades restritas onde só me relaciono com o igual a mim. O todo da pólis permanece, assim, apenas uma somatória de partes em cujos interstícios ela se perde."

"Trata-se de uma cidade que não fala de nós, e nem nós falamos nela. A cidade do futuro parece muda e muda fica sua memória. Isso já estamos construindo, como ao estetizarmos o patrimônio histórico e a memória herdados."

texto integral em Suplemen+o


sábado, 27 de janeiro de 2007

sou o narrador. essa é uma história e vou contá-la ainda que você não queira. o tema é o suicídio e é verdadeira, posso afiançar. não sou onisciente, como dizem, não sei mais do que um pouco sobre mim, mas não vou me privar de deixar algumas impressões que, se não podem ser vistas, podem ser sentidas. essa história foi a primeira e última coisa que escrevi, e nesse dia eu estava na minha casa de praia, que fica quase na areia, sentado a ver o mar e as gaivotas e os barcos e algumas pessoas que já iam se escasseando pois já ia ficando tarde e não era época de turistas, graças a deus, eu não acredito em deus e nem acredito nas regras gramaticais, seja lá o que isso tudo for. uma mulher sentou à praia sozinha, o que me estranhou, uma porque não era comum mulher sozinha àquela hora e dois porque ela não trazia um canga para protegê-la da areia, mulher gosta de praia mas não gosta de areia nem da água, mulher gosta de homem mas não gosta de futebol nem de briga, não acredito em mulheres, mas acredito no que vejo, e a mulher sentou, não me viu, faço questão de não ser visto, e começou a chorar, também acredito no que ouço. não tive receio algum, continuei observando. o sol, que já estava quase a se esconder, parou na linha da água, as gaivotas de voar, as ondas de espumar, mas essas continuaram quebrando e fazendo um barulho estrondoso, como se tivessem quatro metros de altura a partir da flor da água que vem atrás, mas não tinham, e ainda assim eu podia escutar o choro da mulher, que não era alto, todavia. não gosto desse tipo de situação, me faz pensar que está chegando a hora da minha morte que muito provavelmente não vai chegar, essa coisa do vento ficar parado no ar a esperar que lhe diga algo, não gosto disso nem nos homens, quanto menos no vento, que é futriqueiro e fica louco para ir contar ao próximo morro o que o outro lhe dissera e assim causar as maiores discórdias que já se viu na terra. o sol começou a crescer e cresceu de forma que o céu todo virou um sol só, não pelo calor, mas o mundo tomou uma cor laranjada que meus olhos nunca viram, deveria ser escaldante, mas não era, e o vento ficou ali a brincar com as tonalidades, de vez em quando se movimentando para um lado e para outro a misturar o que parecia ser um óleo, e as lágrimas da mulher escorriam laranjas pela areia, que não preciso dizer estava laranja, para o mar laranja, e tudo era laranja, inclusive eu mesmo, mas o laranja não é a cor certa, talvez mais amarelado que o laranja normal, fica sendo laranja-amarelado. vez em quando o vento resolvia fazer um tracejo vermelho por aqui, outro amarelo por lá, sendo que chegou a levar uma lágrima, talvez por engano, aos meus pés. ao tocá-la, ela escorreu pelos meus olhos e o laranja se dissolveu no vento e no mar e no sol, que também era céu, em um azul arroxeado, mas deveras descolorado, e as lágrimas se tornaram mais tristes, e o vento mais frio, creio que chegou a chover uma areia de cristais finos e gelados, que não caíam sobre mim pois eu estava protegido pelo meu telhado de telhas importadas de um lugar que os pobres mortais não devem conhecer, mas que começaram a cortar o corpo da mulher, que já chorava lágrimas de sangue, compreensíveis, convenhamos, e as minhas também ficaram assim e até tinham gosto de sangue, mas um sangue que não era meu e que não se misturava com o azul arroxeado da areia do mar do sol, que já disse que era céu, e ficava ali a vagar pelo ar, tomado pelas incongruências do vento. foi nessa hora que percebi, esse vento é o culpado de tudo, mas creio que ele também se apercebeu e me escorregou aos pés da moça, que estava já caída, imóvel, é isso, estava morta já, estava já morta, pensei, não sou eu. não estava, me ofereceu um beijo, o beijo insaciável da morte não se oferece, disse a ela com toda educação e delicadeza que se espera de alguém como eu, pois este não é o beijo da morte, mas o beijo da vida, que quer se perpetuar, e que estará sempre ao seu alcance, ela me disse com uma voz doce, talvez de sereia, e beijei-a com paixão, ao que fomos sugados pelo mistério do infinito e cuspidos à imensidão dos céus, vindo cair neste terrível caixão em que resolveram nos colocar, como indigentes, vejam só.


um estudo sobre o suicídio

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Este texto não daria um monólogo para teatro?

aurora, estou trancado em casa. todos saíram, e agora sinto falta da minha chave. não sei se é uma boa coisa aos miolos ficar trancado em casa; aqui é tudo de graça. o meu dinheiro, aurora, não serve para nada. o telefone também não, sem que haja a expectativa do encontro não há razão para o telefone, sabia? não adianta chamar a pizza, que só vou sentir o cheiro. vou ver se fico na porta da geladeira para me esfriar um pouco, daí corro para baixo do cobertor e vejo se isso me dá sono. acordei tarde hoje, quero dizer, já não tenho mais sono, posso ter sono daqui a pouco. mas daqui a pouco demora. acho que vou começar a quebrar as coisas, jogar as garrafas de uísque lá embaixo para ver se tenho algum tipo de relação com o mundo. mas não quero causar problemas para ninguém, aurora. eles foram embora, mas já devem estar voltando, quem sabe semana que vem. a despensa está cheia de gordura trans, justo agora que tinha decidido não comer mais gordura trans. acho que vou comer toda a verdura hoje, e as frutas também, senão vão estragar; será meu dia de vegetariano. tudo bem, amanhã fico um pouco mais de tempo no banheiro, mas não tenho mais problema com o tempo, aurora. o tempo ficou trancado lá fora. as contas eu pago tudo pela internet, é a hora em que me sinto mais próximo do mundo. o internet bank. às vezes também gosto quando fico na janela tirando fotos digitais das pessoas lá embaixo, e depois transfiro para meu computador e fico brincando com elas: aumento o contraste, diminuo o brilho, os tons de cinza, dou uma saturada no vermelho ou no azul ou no verde, dependendo; ou até amarelo. corto as fotos, junto umas nas outras, tenho muita criatividade com isso. outras vezes também fico olhando a torneira aberta, imaginando de onde vem aquela água, quais peixes nadaram nela, as manobras do surfe, dos jet-skis, os mergulhadores, os produtos químicos que colocaram para limpar a sujeira que jogo pelos ralos e pela descarga. ela volta, aurora, ela sempre volta. vai suja, volta limpa. chega a conta, pago pela internet, e eles continuam lembrando de mim. minha vida anda sendo fácil. como exercício, faço cooper nos cinco cômodos, cinco vezes em cada, o mais próximo das paredes que posso. isso me faz correr quinhentos metros todos os dias, que, com as flexões, as barras e os abdominais, me mantém em forma e alivia o peso da gordura trans. aliás, começo a desconfiar que meu corpo necessita delas, justo agora que estão acabando. mas tudo bem, estou substituindo os alimentos sólidos pelos líquidos e por isso já desisti daquela idéia maluca de jogar as garrafas de uísque pela janela. na internet, li que um litro de uísque tem algum valor nutricional e, convenhamos, se o álcool vem do açúcar, nada impede que ele volte a ser açúcar. na internet também consigo uns vídeos pornográficos que me deixam excitado e me fazem gozar rapidinho, assim eles aliviam a falta que às vezes faz uma mulher de verdade. aurora, lembra?, quando todos os dias você vinha me acordar, para depois me ver dormir, e me acordar de novo? agora acordo com o barulho da geladeira, do vizinho ou da linha de trem que passa aqui trás de casa. pois é, tem uma linha de trem aqui trás, só agora percebi. começo a me arrepender de ter doado a televisão, aurora. um filme de hollywood agora ia bem para dar uma animada e entrar em contato com a nossa realidade. é a nossa realidade, não é? afinal, por que mesmo eu não assinei aquela revista? não me resta muito dinheiro no banco, acho que não chega a ser o suficiente para pagar as contas. mas acho que vou assinar uma revista semanal ou um jornal diário. eles vão se amontoar na porta, mas vou ter acesso ao conteúdo exclusivo na internet. então não serei mais excluído e não terei mais que recorrer aos sites piratas que estão infestando meu computador de vírus. o computador anda lento, aurora, parece que vai parar qualquer dia. descobri um site que tem episódios de uma novela dos estados unidos e assim, de lambuja, continuo treinando meu inglês. o gás da cozinha acabou, neste prédio velho ainda é gás de botijão. mas ainda tenho o microondas. já fiz de tudo no microondas, você nem imagina as possibilidades. omelete (quando ainda tinha ovos), arroz, pão de forma com manteiga, de tudo. às vezes ele queima as beiradas e deixa o meio frio, mas daí é só colocar o meio no canto e o canto mais para o canto, que resolve, daí é só jogar os cantos fora e comer o meio. acho que vou criar um blog, aurora, vou ensinar umas artimanhas na relação homem-microondas. cuidados que se deve ter, receitas, agrados. quanto mais pego intimidade com as coisas aqui de casa, mas vou entendendo elas. hoje em dia compreendo a vida da geladeira, do fogão, do computador, além do microondas. mas acho que eles é que vão começando a se enjoar de mim. porque quanto mais faço agrados, mais eles se tornam rebeldes. o computador, por exemplo, parou de funcionar há uns dias e com eles foram meus último planos, aurora. daqui a pouco sei que vão interromper o fornecimento de água, luz, internet a cabo (essa eu não me importo mais). por isso estou estocando o quanto de água eu posso. a banheira eu mantenho cheia e não é para tomar banho. é que eu já não faço mais exercício porque não consumo a quantidade de calorias necessárias para serem queimadas. sempre que sinto sede, bebo direto da banheira, e isso me diverte! me sinto um cachorro sedento que encontrou um monte de água limpa para beber. o microondas estou usando para guardar água também, assim como a geladeira. tive que concentrar esforços na água mesmo, já que não dá para armazenar energia, sabia, aurora? mas não pense que eu ando isolado de tudo. dia desses mudou uma amiguinha para cá, é uma viúva negra. daqui a pouco ela vai ter seus filhotes, mas fico me perguntando do seu marido. sei que ela o mata para dar o que comer para as aranhinhas, mas nós não conseguimos achá-lo até agora. ela é uma mãe muito zelosa. está pensando em uma proposta que fiz: se o marido não chegar a tempo, vamos dar de comer às aranhinhas com as partes do meu corpo. acho que vou começar pelos dedos do pé, que já não uso mais. como elas são pequenas, creio que não será preciso chegar ao meu pinto, ficarão satisfeitas, sei lá, ali pelo joelho. e essa esperança, de alimentar as novas gerações, me faz tão renovado! tão feliz, aurora! assim sinto que estamos, eu e você, juntos, como antes. aurora, sinto saudades daqueles tempos. mas, paciência, quando alguém chegar aqui em casa, eu saio correndo ao seu encontro, aurora. até mais.
aurora

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

o que a senhora está olhando vovó? a vida, minha filha. mas que vida, vovó?

isso é o suficiente, pensei ao colocar o ponto de interrogação, mas o ponto continuou me interrogando, e por mais que eu soubesse a resposta eu não podia respondê-lo, ponto, o que queres comigo, perguntei, assim na segunda pessoa porque ouvi contar que para falar com as palavras, que são antigas, deve-se usar a segunda pessoa, e o ponto, ciente da sua importância, ficou quieto, ah ponto, se te coloco uma resposta ruim, sem poesia nenhuma, ficarás apagado e assim viverás para sempre, e o ponto riu de canto, esse desgraçado pensa que já sabe o futuro, pensei, pois então coloco, se duvidas, falei e enfiei a caneta com força no papel, e ela ali ficou, vocês dois aí estão mancomunados, não é, deixem estar, larguei a caneta, o ponto, a tinta, o papel, toda essa patota, patota não, quadrilha, isso sim, malfeitores, ah, a tecnologia é um alívio dessa ditadura, fui-me ao meu computador, digitei a frase e o ponto de interrogação, não sem certo receio quanto a esse último, o que por óbvio não demonstrei, e aquela barra ficou ali piscando para mim, safados, safados, todos uma quadrilha, repeti exasperado, e o computador carinhosamente me disse, pare com essa mania de perseguição, e isso, devo dizer, por um momento amoleceu meu coração, mas só até ver aquela barrinha piscando ao lado do ponto, ah, esse pinga-pinga filho-da-puta, desliguei o computador, porém ao lado continuava o ponto, e o papel e a caneta, desgraçados, vocês venceram, fui à janela pitar um cigarro, já quase esquecido, e não é que esse danado foi dar com a fumaça lá no ponto e voltou com a interrogação, atirei-lhe à janela, e estava prestes a fazer o mesmo com todo o resto quando me atinou uma idéia, e as idéias vão assim encavalando uma nas outras mesmo, a janela, perguntei-a, como estava a vida, fui puxando assunto, tu que viste tanta coisa nesse mundo, e escondeste tantas outras, fui alisando-a assim com a segunda pessoa também para não desmerecê-la, e ela se deixou levar, distraída que sempre foi, vou-me bem, obrigado por perguntar, que tens visto nos último dias, ah, tanta coisa meu senhor, tanta coisa, mas é você que anda recorrendo aos meus peitoris ultimamente, pois é, minha senhora, estou a escrever um livro, ando a pensar muito e sabes que seus reforçados peitoris são sempre uma boa fonte de inspiração, oh, qual o que, imagina, se eu não os tivesse, você não faria seus livros, perguntou, e eu interrompi o curso fácil da conversa, a pensar, essa janela está é com os outros e quer me enrolar, mas fiquei miúdo, que era para investigá-la melhor, pois que nada, os livros de janela são os melhores dentre os já escritos, não sabes, por exemplo, que fernando pessoa estava acostado a uma quando escreveu sua tabacaria, perguntei, vencedor, pois se engana, ele não só não estava à sua, como lhe contarei uma história e, para lhe mostrar minha fidelidade, apontarei os perigos de quedar-se a uma janela, afora o de dar espaço aos suicídios humanos, e essa história quem ma contou foi meu avô, finado por uma demolição monstruosa e despropositada, quando da reforma de um certo edifício na velha turquia, pois acontecera com ele mesmo e posso lhe jurar que não será mentira tudo o que me foi narrado pelo meu avô, estava ele a mirar, como sempre fez, o estreito do bósforo, conheces, em um fim de outono, um dia bonito, com algumas nuvens no céu, os turcos ali a pescarem com suas famílias, e olha que esses edifícios, ao que me consta, eram o mais caros da cidade, e ali vivia uma velha, herdeira de certa fortuna, que ficava longo tempo a mirar o mar, o céu, as mudanças, mas foi o dia em que ela viu algo, e isso meu finado avô não me soube contar, pois estava olhando para a senhora, o que é prova que lhe conto a verdade, e foi que ela paralisou, paralisou, interrompi, pois é, lhe digo, ficou ali, como tivesse visto algo como a mãe do ouro, essa mesmo aqui da nossa terra, ou a medusa, se prefere, e vendo com a cara que eu estava interrompeu a janela, pois lhe digo, se não queres acreditar... não, imagine, continuas, por favor,


pois sim, continuo mas em favor da memória de meu avô, ali ficou a velha e meu avô, desesperado por não saber o que se passara, atordoou-se por completo, e se não fosse janela diria que chegou a bater com o nariz em uma, mas o era, e ficou ali, até que se virou e viu, o mundo estava cinza, cinza, exclamei, pois cinza, não crê, é que... não crê, eu sabia, pois creio, não crê, a uma janela não se engana facilmente, no entanto agora irei até o fim, seguiu determinada a janela, e me conta meu avô que o mundo continuou cinza, e a senhora ali parada, e assim por meses, até que um ramo começou a nascer em uma árvore, um broto verde, intensamente verde, e meu avô ficou ali a apreciar o ramo, já esquecido das cores que estava, e o ramo crescia, viçoso, e o finado teve uma idéia, se a velha visse a cor poderia voltar a viver, se o feitiço fora do contrário, eu digo feitiço mas não foi isso que me foi dito, eu que tenho isso para mim, pois continue, pois continuo, mas como faria uma janela para mover uma senhora petrificada, lhe pergunto, e eu que não sou janela saberia, oras, pois nem ele, lhe digo, e a minha janela ficou em silêncio a mirar o movimento do exterior, uai, é isso, acabou, perguntei ao esperar alguns segundos a ver se ela rompia o silêncio, sim, ela respondeu e eu, inconformado, só sim, perguntei novamente, sim, ela disse melancólica e perguntou com voz boba, moral da história, não seja tapado, o senhor é escritor, deveria ter mais sensibilidade, hein, e pus-me a pensar, a pensar, e nada, pois pode parar de pensar, não vê que a vida passa de acordo com o que se vê pela janela, ela sentenciou um tanto convencida, mas não é que a danada tinha lá sua razão, e pus-me a pensar novamente, mas agora em reflexões filosóficas, reflexões de janela, devo dizer agora, quando ela me interrompeu, o que está olhando, meu senhor, perguntou, eu, nada, a vida, mas que vida, meu senhor? desgraçada.

a janela

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Reedição repensada: Verdade instântanea + "Cântico Negro"

"Cântico Negro

"Vem por aqui" -- dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
* Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"



José Maria dos Reis Pereira (1901 - 1969 / Portugal)

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Novidades

O QSEDQ está com nova cara e uma nova questão: QDESQ?

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Anedota de férias: "O peixe fora d'água"

Quando era mais novo, durante as férias, saía a pescar com um tio. Íamos lá: barco no mar, equipamento em mãos, linha na água e uma boa espera. Mas o fundamental era fazer um bom silêncio, porque conversa espanta os bichinhos que demoram a se achegar; e, afinal, "a gente veio aqui pra conversar ou pra pescar?", resmungava sempre o meu tio. O movimento do barco era como a da rede que balança. Barco pra lá, barco pra cá e eis a dúvida que surge: peixe que morre fora d'água, morre de quê? Afogado?

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Jogo do Trenó (ou Line Rider)

Viciante... olha o que é possível fazer. Haja tempo.

Site oficial do brinquedo

Que país é esse?

End of Another Year...
You know your country is in trouble when:

-The UN has to open a special branch just to keep track of the chaos and bloodshed, UNAMI.
-Abovementioned branch cannot be run from your country.
-The politicians who worked to put your country in this sorry state can no longer be found inside of, or anywhere near, its borders.
-The only thing the US and Iran can agree about is the deteriorating state of your nation.
-An 8-year war and 13-year blockade are looking like the country's 'Golden Years'.
-Your country is purportedly 'selling' 2 million barrels of oil a day, but you are standing in line for 4 hours for black market gasoline for the generator.
-For every 5 hours of no electricity, you get one hour of public electricity and then the government announces it's going to cut back on providing that hour.
-Politicians who supported the war spend tv time debating whether it is 'sectarian bloodshed' or 'civil war'.
-People consider themselves lucky if they can actually identify the corpse of the relative that's been missing for two weeks.

A day in the life of the average Iraqi has been reduced to identifying corpses, avoiding car bombs and attempting to keep track of which family members have been detained, which ones have been exiled and which ones have been abducted. (...)

Fonte: http://riverbendblog.blogspot.com/

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

notícias do distante mundo da advocacia

Para alguma coisa a carteirinha da OAB e os anos de imersão no mundo jurídico me valem. Com certa distância pode-se aproveitar um senso do que vai por caminhos com melhor ou pior cheiro. Ao fato, a justiça ordenou que os provedores impedissem o acesso dos seus usuários ao YouTube. Fosse só pela proibição já seria um absurdo facilmente capaz de fazer com que qualquer brasileiro com uma vaga noção da história recente lembrasse do termo censura – e foi o que os meios de comunicação se apressaram em fazer. No Brasil, qualquer coisa que mexa com a imprensa ou o que se possa entender como tal já é logo taxada de censura, mas essa é outra extensão do assunto. No seu interior, vemos a incapacidade do judiciário pensar em sintonia com a atualidade e com a realidade. Como uma China ou a antiga União Soviética pretende estender uma cortina impedindo que os milhões de brasileiros com acesso à internet possam acompanhar tudo o que se pode acessar pelo site de vídeos recentemente vendido por bilhões de dólares à Google. O YT, em certa medida, revolucionou, como fizeram antes outras iniciativas, as potencialidades da internet e as previsões de futuro das mídias tradicionais. Mas vai um desembargador solenemente sentado em seu gabinete no belo prédio do TJ de São Paulo ordenar que um assessor apronte um despacho: “j. bloqueiem-se” o YT. Brasileiro nenhum pode acessar qualquer coisa que seja. Mas agora vem o motivo de tal decisão, que nos força até a desrespeitar a nossa Constituição (constituição? do que?) e rir. Sim, um raro caso em que a justiça, apesar de tudo, torna nosso dia mais alegre (ver texto abaixo): bloqueando o acesso de todos brasileiros ao YT eles querem, na verdade, nos proibir de assistir ao vídeo da Cicarelli! Não é preciso dizer mais, todos sabem o que é o vídeo da Cicarelli, o que ela e o namorado fizeram, onde fizeram, como fizeram – e os que não o receberam por e-mail podem acessá-lo em diversos sites espalhados pela rede. O desembargador diz que queria tirar somente o vídeo do ar, como se isso fosse, na prática, possível. O advogado do casal diz que queria mesmo era punir o site por não tirar o vídeo. O técnico responsável pelo laudo que deu suporte à decisão diz que o que vale é a interpretação do desembargador do seu próprio despacho. Bem, a Google, além da aquisição do site-sensação, parece também ter comprado mais um problema com a justiça brasileira.

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Tenho perdido muito tempo ultimamente com a justiça pelo simples fato dela não se dar bem com internet. Certidões que poderiam ser acessadas pela rede e impressas em casa me obrigaram a ir aos fóruns, enfrentar filas inacreditáveis e, como ocorreu hoje no fórum trabalhista, esperar por três horas para o funcionário público imprimir as duas folhas na minha frente e me cobrasse algo em torno de onze reais por isso. Bem, está lida a piauí do mês.

trecho de um diário

Ficamos assim um tempo, com o pensamento abalado pela lua, sem falar um com o outro, cada um fazendo suas coisas, sem tentar falar quando o silêncio constrange, sendo que ele é adequado e até necessário e não deve ser interrompido por manifestações artificiais. Os mosquitos picavam nossos pés, o que nos fazia olhar pro outro enquanto os caçava, mas logo voltávamos às nossas coisas. Eu escrevendo e desenhando, ele escrevendo mensagens no celular para suas “menininhas”.