sábado, 27 de janeiro de 2007

sou o narrador. essa é uma história e vou contá-la ainda que você não queira. o tema é o suicídio e é verdadeira, posso afiançar. não sou onisciente, como dizem, não sei mais do que um pouco sobre mim, mas não vou me privar de deixar algumas impressões que, se não podem ser vistas, podem ser sentidas. essa história foi a primeira e última coisa que escrevi, e nesse dia eu estava na minha casa de praia, que fica quase na areia, sentado a ver o mar e as gaivotas e os barcos e algumas pessoas que já iam se escasseando pois já ia ficando tarde e não era época de turistas, graças a deus, eu não acredito em deus e nem acredito nas regras gramaticais, seja lá o que isso tudo for. uma mulher sentou à praia sozinha, o que me estranhou, uma porque não era comum mulher sozinha àquela hora e dois porque ela não trazia um canga para protegê-la da areia, mulher gosta de praia mas não gosta de areia nem da água, mulher gosta de homem mas não gosta de futebol nem de briga, não acredito em mulheres, mas acredito no que vejo, e a mulher sentou, não me viu, faço questão de não ser visto, e começou a chorar, também acredito no que ouço. não tive receio algum, continuei observando. o sol, que já estava quase a se esconder, parou na linha da água, as gaivotas de voar, as ondas de espumar, mas essas continuaram quebrando e fazendo um barulho estrondoso, como se tivessem quatro metros de altura a partir da flor da água que vem atrás, mas não tinham, e ainda assim eu podia escutar o choro da mulher, que não era alto, todavia. não gosto desse tipo de situação, me faz pensar que está chegando a hora da minha morte que muito provavelmente não vai chegar, essa coisa do vento ficar parado no ar a esperar que lhe diga algo, não gosto disso nem nos homens, quanto menos no vento, que é futriqueiro e fica louco para ir contar ao próximo morro o que o outro lhe dissera e assim causar as maiores discórdias que já se viu na terra. o sol começou a crescer e cresceu de forma que o céu todo virou um sol só, não pelo calor, mas o mundo tomou uma cor laranjada que meus olhos nunca viram, deveria ser escaldante, mas não era, e o vento ficou ali a brincar com as tonalidades, de vez em quando se movimentando para um lado e para outro a misturar o que parecia ser um óleo, e as lágrimas da mulher escorriam laranjas pela areia, que não preciso dizer estava laranja, para o mar laranja, e tudo era laranja, inclusive eu mesmo, mas o laranja não é a cor certa, talvez mais amarelado que o laranja normal, fica sendo laranja-amarelado. vez em quando o vento resolvia fazer um tracejo vermelho por aqui, outro amarelo por lá, sendo que chegou a levar uma lágrima, talvez por engano, aos meus pés. ao tocá-la, ela escorreu pelos meus olhos e o laranja se dissolveu no vento e no mar e no sol, que também era céu, em um azul arroxeado, mas deveras descolorado, e as lágrimas se tornaram mais tristes, e o vento mais frio, creio que chegou a chover uma areia de cristais finos e gelados, que não caíam sobre mim pois eu estava protegido pelo meu telhado de telhas importadas de um lugar que os pobres mortais não devem conhecer, mas que começaram a cortar o corpo da mulher, que já chorava lágrimas de sangue, compreensíveis, convenhamos, e as minhas também ficaram assim e até tinham gosto de sangue, mas um sangue que não era meu e que não se misturava com o azul arroxeado da areia do mar do sol, que já disse que era céu, e ficava ali a vagar pelo ar, tomado pelas incongruências do vento. foi nessa hora que percebi, esse vento é o culpado de tudo, mas creio que ele também se apercebeu e me escorregou aos pés da moça, que estava já caída, imóvel, é isso, estava morta já, estava já morta, pensei, não sou eu. não estava, me ofereceu um beijo, o beijo insaciável da morte não se oferece, disse a ela com toda educação e delicadeza que se espera de alguém como eu, pois este não é o beijo da morte, mas o beijo da vida, que quer se perpetuar, e que estará sempre ao seu alcance, ela me disse com uma voz doce, talvez de sereia, e beijei-a com paixão, ao que fomos sugados pelo mistério do infinito e cuspidos à imensidão dos céus, vindo cair neste terrível caixão em que resolveram nos colocar, como indigentes, vejam só.


um estudo sobre o suicídio

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