sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

o que a senhora está olhando vovó? a vida, minha filha. mas que vida, vovó?

isso é o suficiente, pensei ao colocar o ponto de interrogação, mas o ponto continuou me interrogando, e por mais que eu soubesse a resposta eu não podia respondê-lo, ponto, o que queres comigo, perguntei, assim na segunda pessoa porque ouvi contar que para falar com as palavras, que são antigas, deve-se usar a segunda pessoa, e o ponto, ciente da sua importância, ficou quieto, ah ponto, se te coloco uma resposta ruim, sem poesia nenhuma, ficarás apagado e assim viverás para sempre, e o ponto riu de canto, esse desgraçado pensa que já sabe o futuro, pensei, pois então coloco, se duvidas, falei e enfiei a caneta com força no papel, e ela ali ficou, vocês dois aí estão mancomunados, não é, deixem estar, larguei a caneta, o ponto, a tinta, o papel, toda essa patota, patota não, quadrilha, isso sim, malfeitores, ah, a tecnologia é um alívio dessa ditadura, fui-me ao meu computador, digitei a frase e o ponto de interrogação, não sem certo receio quanto a esse último, o que por óbvio não demonstrei, e aquela barra ficou ali piscando para mim, safados, safados, todos uma quadrilha, repeti exasperado, e o computador carinhosamente me disse, pare com essa mania de perseguição, e isso, devo dizer, por um momento amoleceu meu coração, mas só até ver aquela barrinha piscando ao lado do ponto, ah, esse pinga-pinga filho-da-puta, desliguei o computador, porém ao lado continuava o ponto, e o papel e a caneta, desgraçados, vocês venceram, fui à janela pitar um cigarro, já quase esquecido, e não é que esse danado foi dar com a fumaça lá no ponto e voltou com a interrogação, atirei-lhe à janela, e estava prestes a fazer o mesmo com todo o resto quando me atinou uma idéia, e as idéias vão assim encavalando uma nas outras mesmo, a janela, perguntei-a, como estava a vida, fui puxando assunto, tu que viste tanta coisa nesse mundo, e escondeste tantas outras, fui alisando-a assim com a segunda pessoa também para não desmerecê-la, e ela se deixou levar, distraída que sempre foi, vou-me bem, obrigado por perguntar, que tens visto nos último dias, ah, tanta coisa meu senhor, tanta coisa, mas é você que anda recorrendo aos meus peitoris ultimamente, pois é, minha senhora, estou a escrever um livro, ando a pensar muito e sabes que seus reforçados peitoris são sempre uma boa fonte de inspiração, oh, qual o que, imagina, se eu não os tivesse, você não faria seus livros, perguntou, e eu interrompi o curso fácil da conversa, a pensar, essa janela está é com os outros e quer me enrolar, mas fiquei miúdo, que era para investigá-la melhor, pois que nada, os livros de janela são os melhores dentre os já escritos, não sabes, por exemplo, que fernando pessoa estava acostado a uma quando escreveu sua tabacaria, perguntei, vencedor, pois se engana, ele não só não estava à sua, como lhe contarei uma história e, para lhe mostrar minha fidelidade, apontarei os perigos de quedar-se a uma janela, afora o de dar espaço aos suicídios humanos, e essa história quem ma contou foi meu avô, finado por uma demolição monstruosa e despropositada, quando da reforma de um certo edifício na velha turquia, pois acontecera com ele mesmo e posso lhe jurar que não será mentira tudo o que me foi narrado pelo meu avô, estava ele a mirar, como sempre fez, o estreito do bósforo, conheces, em um fim de outono, um dia bonito, com algumas nuvens no céu, os turcos ali a pescarem com suas famílias, e olha que esses edifícios, ao que me consta, eram o mais caros da cidade, e ali vivia uma velha, herdeira de certa fortuna, que ficava longo tempo a mirar o mar, o céu, as mudanças, mas foi o dia em que ela viu algo, e isso meu finado avô não me soube contar, pois estava olhando para a senhora, o que é prova que lhe conto a verdade, e foi que ela paralisou, paralisou, interrompi, pois é, lhe digo, ficou ali, como tivesse visto algo como a mãe do ouro, essa mesmo aqui da nossa terra, ou a medusa, se prefere, e vendo com a cara que eu estava interrompeu a janela, pois lhe digo, se não queres acreditar... não, imagine, continuas, por favor,


pois sim, continuo mas em favor da memória de meu avô, ali ficou a velha e meu avô, desesperado por não saber o que se passara, atordoou-se por completo, e se não fosse janela diria que chegou a bater com o nariz em uma, mas o era, e ficou ali, até que se virou e viu, o mundo estava cinza, cinza, exclamei, pois cinza, não crê, é que... não crê, eu sabia, pois creio, não crê, a uma janela não se engana facilmente, no entanto agora irei até o fim, seguiu determinada a janela, e me conta meu avô que o mundo continuou cinza, e a senhora ali parada, e assim por meses, até que um ramo começou a nascer em uma árvore, um broto verde, intensamente verde, e meu avô ficou ali a apreciar o ramo, já esquecido das cores que estava, e o ramo crescia, viçoso, e o finado teve uma idéia, se a velha visse a cor poderia voltar a viver, se o feitiço fora do contrário, eu digo feitiço mas não foi isso que me foi dito, eu que tenho isso para mim, pois continue, pois continuo, mas como faria uma janela para mover uma senhora petrificada, lhe pergunto, e eu que não sou janela saberia, oras, pois nem ele, lhe digo, e a minha janela ficou em silêncio a mirar o movimento do exterior, uai, é isso, acabou, perguntei ao esperar alguns segundos a ver se ela rompia o silêncio, sim, ela respondeu e eu, inconformado, só sim, perguntei novamente, sim, ela disse melancólica e perguntou com voz boba, moral da história, não seja tapado, o senhor é escritor, deveria ter mais sensibilidade, hein, e pus-me a pensar, a pensar, e nada, pois pode parar de pensar, não vê que a vida passa de acordo com o que se vê pela janela, ela sentenciou um tanto convencida, mas não é que a danada tinha lá sua razão, e pus-me a pensar novamente, mas agora em reflexões filosóficas, reflexões de janela, devo dizer agora, quando ela me interrompeu, o que está olhando, meu senhor, perguntou, eu, nada, a vida, mas que vida, meu senhor? desgraçada.

a janela

2 comentários:

Anônimo disse...

isto soa como metalinguagem ao pé da letra...
very good, indeed.

João Pedro disse...

curioso como às vezes eu acho que só sei escrever de forma metalinguística, escancarada ou disfarçada. neste caso, acho que assumi isso de vez, a um certo extremo. o que, claro, não exclui as outras mensagens. o marco mesmo enxergou o assunto da memórias das coisas. mas valeu, abs.