segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

True Grit

houve uma perseguição inesquecível que empreendi na rua da minha casa. era noite e eu estava na cozinha quando vi nosso gato caminhando agilmente atrás de um rato pequeno. sem ter muito o que pensar, saí correndo para fora: os três, no meio da rua, devíamos formar uma imagem pitoresca: eu atrás do gato atrás do rato. até que ele o alcançou e começou com umas brincadeiras que me pareceram pertencer à profunda intimidade entre duas espécies tão imbricadas nos respectivos cursos evolutivos - como criança brincando com areia. deslocado, deve ter sido a primeira vez que me senti "segurando vela" - uma quina aparada de um triângulo. Ou talvez eu tenha desistido da insensata perseguição muito antes das brincadeiras que costumam coroar esse tipo de relacionamento e tenha voltado a me ocupar da comida um tanto simples que eu já começara a ensaiar com aquela idade.

Black Swan

agora, animal matável, mas quase imortal, era o urubu. distante, inalcançável e perigoso até para aviões. o fato de ser feio e fedido - embora nunca o tenha visto nem cheirado de muito perto até a bienal do ano passado - era relativizado pelo outro fato de estarem voando sempre muito alto, serenos, espiralando correntes de ar ou espreitando um moribundo.

mas na verdade não era disso que eu queria falar. ou era.

diante daquela lonjura, daquela tranquilidade inabalável, eu me sentia um monte de carne sangrenta queimando os pés nas pedras da piscina esverdeada; e temia quando chegasse a minha vez de ser o olho daquele tornado negro e suave: certeiro. mordiscariam meus olhos? eu pulava na água e me esquecia de tudo, desaparecendo sob o lodo e, de vez em quando, até cortava o pé num dos azulejos lascados do fundo invisível da piscina. saltava as sucessivas grades e ia choramingar num canto onde provavelmente poderia ser visto.

cansado de esperar, entrava no banho e curtia a pele enrugada olhando a permanência dos urubus pela janela do banheiro: ardia. depois, não há depois: continuo sem ter ideia de onde eu fora parar.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Winter's Bone

na minha cabeça de criança houve sempre uma diferença muito clara entre os bichos matáveis e os não matáveis - não coincidindo, claro, com os comestíveis e não comestíveis. pardais podiam ser exterminados, inclusive seus filhotes retirados do ninho, das maneiras mais cruéis - dando, vivos, de comida aos gatos, por exemplo. andorinhas, não, porque seus ovos eram vítimas dos pardais. pombas, como pragas, sempre mereceram a mira das armas que caíram nas minhas pequenas mãos: estilingues, revólveres de pressão e espingardas de chumbinho. beija-flores eram o sumo do que não se deveria molestar, mas gambás nós atacávamos com toda fúria: venenos e cachaças disfarçados em ovos e bananas, pauladas à vontade. isso durou bastante tempo mas depois, inexplicavelmente, os bichos começaram a sumir da minha vida - ou eu da deles. e de tal modo esse hiato se transformou em reset que já não vejo nem pardais, nem andorinhas, nem gambás. pombas, sim; mas quando vou procurar o estilingue no bolso de trás, ele já não está lá: é como se nunca estivera.

A notícia vivenciada

Os gritos agudos, ecoando pelos prédios, interromperam o trabalho - já atrasado - dos pedreiros. Imobilizado, o pequeno não tinha muito o que fazer. Seu companheiro hesitava entre fugir e pular no colo da senhora: amarrado, e vendo-a berrar, só lhe restava rezar para que a turba não investisse também contra ele. Passantes acudiram, desferiram paneladas e bicudas, mas nada pôde contra a morte: o pequeno llasa acabou seus dias como um frango desossado, rolado até a sarjeta para não atrapalhar o trânsito. Os boxers lamberam os beiços e voltaram para casa - deviam ter sede e alguma sensação muito profunda de dever cumprido. A dona do falecido desfalecia nos braços de dois condolentes. E, na esquina, os quase acidentes voltaram a distrair o trabalho atrasado dos pedreiros.


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